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Viagem ao Rio da Prata: por Ulrich Schmiedl
Viagem ao Rio da Prata: por Ulrich Schmiedl

A CHEGADA DOS PRIMEIROS CAVALOS AO RIO DA PRATA

 

TRECHO DO LIVRO VIAGEM AO RIO DA PRATA, ESCRITO PELO PARTICIPANTE ALEMÃO DA EXPEDIÇÃO DE PEDRO DE MENDOZA.

 

“ESTES ÍNDIOS QUERENDIS USAM, PARA LUTAR, ARCOS, FLECHAS E DARDOS, ESPÉCIE DE LANÇA CURTA COM PRONTA DE PEDRA AFIADA E TRIFURCADA.  TAMBÉM SE SERVEM DE BOLAS DE PEDRA PRESAS NUMA CORDA DE COURO.  COM ELAS ENREDAM AS PATAS DOS VEADOS E OS FAZEM CAIR.  FOI ASSIM QUE MATARAM NOSSO CAPITÃO E DOIS FIDALGOS MONTADOS A CAVALO, O QUE EU VI COM ESTES OLHOS DA MINHA CARA.  OS QUE ESTAVAM A PÉ MATARAM COM OS DARDOS.”  ULRICH SCHMIEDL.

 

O cacique dos Querendis caminha com cautela em direção ao rio, do qual só sente o cheiro das águas barrentas.  Logo atrás dele, no meio da escuridão, uns quinhentos guerreiros confundem-se com o capim alto e as touceiras de espinilhos.  Todos trazem lanças curtas, arcos e flechas, além das temíveis boleadeiras, arma de arremesso inventada por eles para a caça e para a guerra.  São altos e de pele escura, como seus irmãos Guenoas, Charruas e Minuanos, todos índios Pampeanos.

 

Pouco a pouco, o vulto do fortim em construção vai-se revelando na luz leitosa do amanhecer.  Ouve-se nitidamente um toque de corneta e logo os brancos de estranhas roupas começam a sair para todos os lados, em busca de lenha, muita escassa naquele lugar.  Todos trazem atravessados às costas os paus-de-fogo que matam de longe, como as flechas, mas sempre com fumaça e rugido de trovão.

 

Algumas mulheres brancas também estão om eles, cobertas da cabeça aos pés com panos desconhecidos para quem só se veste com tangas de couro curtido.  Aliás, os Pampeanos chamam de tolderias suas pequenas aldeias formadas por ocas retovadas de couro de berá, o cervo galheiro.  Tendas que as mulheres, altas e morenas como os homens, montam e desmontam com incrível rapidez.  Seminômades, ocupam há centenas de anos o território de caça e fartura de peixes que se estende à margem direita daquele largo rio que chamam de Paraná.

 

O cacique respira a brisa fresca e enruga a testa.  Mais uma vez, sente o cheiro acre daqueles animais desconhecidos.  Quando viram de longe os brancos a desembarcá-los de suas casas flutuantes, os nativos pensaram que seriam muito bons para comer.  Bichos maiores que o maior dos berás, mas sem chifres e com uma franja de pelos longos no pescoço e no rabo.  Com seu olhar agudo, o tuxaua tinha mesmo verificado, quando se aproximou deles um pouco mais, que tinham os cascos inteiros, ao contrário de todos os cervos do pampa, que eram rachados ao meio.

 

Também a pelagem era diferente dos veados, sendo alguns brancos, outros negros ou vermelhos escuros e até malhados.  Já sabia, depois de dez luas da presença dos brancos, que eles não comiam aqueles enormes animais, e não custara muito a descobrir para que serviam.

 

No entardecer de um dia chuvoso, um guerreiro vira uma cena que fora obrigado a descrever, com muitos gestos e escassas palavras, a todos os índios da tolderia.  Sem nenhuma dúvida, ele vira um homem branco montado em um daqueles animais.  E como essa palavra não existisse no idioma dos nativos, o guerreiro teve que montar num tronco de árvore, batendo os calcanhares e movimentando os braços, para imitar o que o homem fazia com as rédeas.

 

O cacique era inteligente e tratou de vigiar o local em que os estranhos animais erram guardados, um grande espaço arredondado feito com espeques de pau cravados no chão.  E viu com seus próprios olhos um daqueles bichos ser montado e obedecer aos comandos das tiras de couro que vinham da sua boca até as mãos do cavaleiro.

 

Imaginou-se fazendo o mesmo, a frente dos seus guerreiros, vencendo enormes distâncias sem dar um passo sequer.  E, na véspera do ataque ao fortim, recomendou a todos os atacantes o maior cuidado para não ferirem nenhum daqueles animais.

 

A primeira flecha atingiu o peito de um homem que restava no alto da muralha de troncos de madeira, perto de um espeque com um  pano colorido que ondulava ao vento.  Logo o alarme foi dado e os brancos começaram a atirar, mas sem acertarem os índios emboscados nas melhores posições.  O sol mal atingira dois palmos no alto do horizonte e já os invasores fugiam em debandada para a margem do rio.

 

Ali entravam as canoas e pagaiavam em direção às casas flutuantes que, por serem muito grandes, estavam bem longe da margem.  Também longe demais para que pudessem atingir os índios aqueles grandes paus de fogo dessas casas, grossos como troncos de árvores que rugiam como uma tempestade. 

 

Pensando que todos os brancos em terra estavam mortos, o tuxaua aproximou-se do cercado onde os cobiçados animais corriam em círculo, soltando estranhos sons pelas narinas.  O cacique pensava o que fazer para levá-los, um a um, até a tolderia, quando surgiu do nada um guerreiro branco e abriu a porteira dissimulada entre os espeques fincados no chão.  Uma boleadeira o atingiu em plena testa e foi logo crivado de flechas, mas os índios não conseguiram impedir que aqueles animais preciosos fugissem em louca disparada.

 

Da Nau Capitânea, o Comandante da expedição espanhola, Dom Pedro de Mendoza y Luján, acompanhou a fuga dos cavalos pelo óculo de alcance.  Eram os remanescentes dos 72 machos e fêmeas embarcados na Andaluzia em seus 11 navios.  Alguns morreram a bordo ou caíram no mar, depois da grande tempestade que os colhera na costa do Brasil.  Outros foram mortos a flechaços no primeiro combate contra aqueles mesmos índios.  E Mendoza contraiu os maxilares, pensando que ali morrera seu próprio filho, Diego, o capitão que comandava os atacantes, e muitos outros espanhóis, dentre eles seis fidalgos.  Depois de dez meses, entre fevereiro e dezembro de 1536, a tentativa de fundar o porto de Santa Maria del Buen Aire redundava num completo fracasso.

 

Os espanhóis só voltariam à segunda tentativa de fundar Buenos Aires, em 1580, com a expedição de Juan de Garay.  Durante aqueles 44 anos, os cavalos espanhóis se haviam multiplicado aos milhares naquelas pastagens do pampa, consideradas as melhores do mundo.  Multiplicação sujeita às leis naturais de sobrevivência, que eliminou os mais fracos e preservou os machos e fêmeas que souberam adaptar-se às mudanças de temperatura, à alimentação escassa das épocas de geada, aos jaguares e pumas que tomaram gosto por sua carne adocicada.

 

Quanto aos Pampeanos, a expedição de Garay registrou, logo da chegada, que centenas deles já estavam montados a cavalo.  Assim, foram os índios os primeiros a montar o nosso cavalo Crioulo, orgulho maior dos gaúchos argentinos, uruguaios e brasileiros.

 

Fonte:  Correio do Povo/Caderno de Sábado/Alcy Cheuiche (Escritor) em 4 de junho de 2016.