A TRAJETÓRIA DO PRANTO E DA DOR COMO EDUCAÇÃO.
ALAN PAULS – “NO ENTANTO, O LIVRO PODE SER VISTO NÃO COMO UM ELOGIO AO PRANTO, PELO CONTRÁRIO, É UMA CRÍTICA AO EXAGERO SENTIMENTAL QUE SE COSTUMA TER AO NARRAR EPISÓDIOS DE REGIMES TOTALITÁRIOS.”
A dor não conta histórias. Quem conta são as lágrimas. Talvez o livro A HISTÓRIA DO PRANTO, do escritor argentino Alan Pauls pudesse ter como ponto de partida essas duas primeiras frases iniciais. A história chama a atenção pela delicada e pungente narrativa através do olhar de uma criança de 4 anos, em que expõe a brutal situação política da Argentina e da América Latina, na década de 70. Na verdade, para dar conta da complexidade labiríntica dessa narrativa, Alan Pauls intercala as idades do protagonista que ora pensa e reflete com a sensibilidade infantil, ora é um adulto, consciente e culto. No entanto, o livro pode ser visto não como um elogio ao pranto, pelo contrário, é uma crítica ao exagero sentimental que se costuma ter ao narrar episódios de regimes totalitários.
É importante dizer que apesar de Alan Pauls ser fruto de uma tradição literária composta por escritores como Ernesto Sábato, Borges e Cortázar, autores que, em suas obras, marcaram a literatura mundial por seus estilos singulares, o livro de Pauls, não está centrado apenas no estilo caleidoscópico, sua obra é também um grande exercício de memória, fragmentação e rupturas. As lembranças involuntárias do narrador saltam a todo instante como ecos proustianos. Mas certamente não aquele Proust que Samuel Beckett ressaltou certa vez em um ensaio: “O narrador de Proust é um homem de boa memória que nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada”.
Por outro lado, o narrado de A HISTÓRIA DO PRANTO é aquele que esquece, ou melhor, tem de esquecer para lembrar. Uma lembrança carregada de um olhar infantil e que, na maioria das vezes, é o que lhe confere verossimilhança, já que recorre a uma narrativa com tramas muito simples: a de um menino que tem como herói o Super-Homem, refletindo sobre as fragilidades deste mesmo herói em torno da famigerada Kryptonita. É também a história de uma menino que pensa em atravessar uma janela e impactar seu corpo em uma vidraça. É também a história de um menino que não chora na frente do pai. E também a história de uma criança que sente inveja do choro alheio: “Inveja o pranto, naturalmente, o incontido do pranto e todo o circo ao redor, os lacrimais vermelho-sangue, as erupções de rubor, os acessos de soluços que sacodem o amigo a raiva descontrolada com que esfrega as mãos, o modo como de quando em quando cobre o rosto para sufocar, talvez para estimular, uma nova rajada de lágrimas. Porém, mais do que tudo, ele inveja a proximidade que seu amigo tem das imagens que o fazem chorar”.
Interessante notar que ao colocar a narrativa sob o ponto de vista de uma criança que margeia o pranto para assim contar a história da ditadura argentina e latino-americana, podemos também inferir que há uma crítica à tradição argentina que só confere legitimidade para quem de fato a viveu. Criou-se uma espécie de “Monopólio da Dor”, como já disse o próprio Alan em entrevistas, ou seja, como se as novas gerações não pudessem refletir e narrar sobre o recente passado político. Esta crítica se torna mais evidente quando o protagonista não consegue chorar ou mesmo recusa o pranto: “Allende não deixará de ser presidente do Chile quando o palácio que era sede de seu poder for reduzido a cinzas... Ele o vê chorar, e antes que possa entender com todas as .letras por que chora... percebe que não irá chorar, porque ele também gostaria de chorar. Daria tudo o que tem para chorar, mas não consegue”, como se houvesse no narrador uma recusa a vitimização e procurasse compreender através desse olhar juvenil aquilo que a sua geração não passou diretamente ou conscientemente. A dor educa, mas não conta uma história: “A dor é sua educação e sua fé. A dor o torna crente. Acredita apenas, ou sobretudo, naquilo que sofre”. Porque para contar também é preciso a experiência dos que observam “de fora”. Um olhar temporal, distanciado e lúcido. O olhar das novas gerações que se recusam ao sentimentalismo, mas que tem a dimensão da gravidade sombria e violenta de um sistema político que se abateu na América Latina recentemente.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Jeferson Tenório (Escritor e autor de “O Beijo na Parede”) em 10 de outubro de 2015.