Zadie Smith, Patricia Highsmith, Doris Lessing, Margaret Atwood, Pam Houston, Wislawa Szymborska, Gabriela Mistral, Ana Maria Gonçalves, Cecilia Meireles e Toni Morrison.
MULHERES, LITERATURA E MAIS UMA PROVOCAÇÃO
Os ânimos não se acalmaram desde a criação da hashtag #readwomen2014. Pudera, a começar pela programação da Flip deste ano, quase nada mudou
Era novembro de 2014 quando a gaúcha Luisa Geisler, conhecida após ter levado o Prêmio Sesc de Literatura aos 19 anos e hoje autora de dois romances, afirmava no jornal fluminense O Globo que escreve “como mulher, sim”. Nesse contexto, Luisa se posicionava contra os “elogios sinceros” que costuma receber — os de que escreve como um homem.
No mesmo texto, a escritora admitia o machismo na literatura e criticava a escassa presença feminina em prêmios e antologias recentes, como a nacional Por Que Ler os Contemporâneos — Autores que Escreveram o Século 21 (ed. Dublinense). “O meio literário é machista e nada disso é consciente. Aliás, machismo dificilmente é consciente. Nunca é uma cúpula de homens rindo maleficamente e planejando: ‘vamos calar todas as mulheres por serem tão inferiores!'”, dizia Luisa, que por fim, concluía: “Não sugiro cotas. Sugiro ler mulheres, e só”.
A antologia mencionada por Luisa já diz muito sobre mulher e literatura. Entre seus quatro organizadores, há duas mulheres, mas a obra lista 101 autores e apenas 14 autoras.
“Por motivos históricos diversos, as mulheres, até pouco tempo — estou pensando ao longo da história, não semana passada — só eram alfabetizadas para fins de etiqueta e para enviar convites de casamento. Alguns livros sequer eram permitidos a elas, que, não sei se vocês sabem, dependiam de algum homem (pai ou marido) e eram encorajadas (pra não dizer obrigadas) a acatar suas decisões. Claro que tivemos algumas que conseguiram escrever mesmo assim, como Mary Shelley e Jane Austen, mas elas são exceções. A maior parte das mulheres tinha sua vida restrita à vida familiar e privada. Se a mulher sequer tinha autonomia sobre sua vida, como é que ia escolher ser escritora? Sem nem mencionar a quantidade de mulheres que escreveu e teve sua obra assinada por um homem — e isso não aconteceu só na literatura: era terrivelmente comum no campo da ciência também.”, argumenta Clara Averbuck, criadora do site Lugar de Mulher e autora de seis livros, no texto Escrever como Homem?.
Em janeiro de 2014, a escritora e ilustradora britânica Joanna Walsh criou no Twitter a hashtag #readwomen2014, uma das mais comentadas do ano. A campanha propunha que as pessoas passassem a ler mais livros escritos por mulheres. “Eu só queria celebrar a obra de escritoras, mas o movimento cresceu. Percebi que existiam muitas outras pessoas insatisfeitas”, me contou por e-mail. A hashtag de Joanna foi oportuna, surgiu em um momento no qual coisas que incomodam nem sempre permanecem abafadas. A ação ganhou versões em outros idiomas e, no Brasil, a própria Luisa Geisler incentivou em seu texto do O Globo o uso de #leiamulheres2014.
Em 2015, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques criaram um clube de leitura inspirado neste movimento, o #leiamulheres, que acontece em São Paulo na livraria Blooks — a participação é livre e gratuita. As resenhas dos livros discutidos são publicadas aqui na Confeitaria, como é o caso de A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath, Reze pelas Mulheres Roubadas, de Jennifer Clement, e A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin. O clube também acontece na Blooks do Rio de Janeiro e na Livraria Arte & Letra, em Curitiba.
Pouco antes, em 2012, a professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, que coordena o grupo de estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e edita a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, já expunha os sintomas de uma alarmante falta de representatividade feminina na literatura nacional. Com o livro Literatura Brasileira Contemporânea: Um Território Contestado (ed. Horizonte), ela concluiu que, entre 1990 e 2004, os homens representaram 75% dos autores publicados no país. A pesquisa da professora vai além e desenha um perfil majoritário de quem publica por aqui: 70% dos autores vêm de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Enquanto 93,9% desses escritores, entre homens e mulheres, são brancos. Desconfio que uma literatura que privilegia um inegável protagonismo masculino-branco-classe média não pode receber outro predicado que não “machista”.
O assunto é polêmico; o livro de Regina, também. Apesar de apresentar dados expressivos, ele foi bastante criticado por especialistas da área. Muitos disseram que a professora se limitou no recorte de seu objeto de estudo. Na época, ela escolheu três grandes editoras nacionais: Companhia das Letras, Record e Rocco. Mas, e se o recorte incluísse as independentes e outras menores? Os resultados ainda seriam os mesmos?
Regina defende: “São as grandes editoras que fazem os livros chegarem a todas as livrarias do país, que conseguem resenhas nos jornais e traduções para o exterior. Portanto, são elas que consagram um autor, sem que haja aqui qualquer julgamento de valor literário. Creio que a pesquisa chama a atenção para o fato de que ‘literatura’ não é apenas aquilo que está entre as duas capas de um livro, mas algo que envolve muitas outras questões, inclusive sociais, que precisam ser refletidas”.
Estamos em 2015, a duas semanas da Flip, a maior festa literária do país. Ao que parece, nem o texto de Luisa, nem as populares hashtags, nem a pesquisa de Regina sensibilizaram a organização do evento. A programação desta edição não é diferente de outros anos. Na festa, elas continuam minoria: desta vez são 8 mulheres e 29 homens. No Twitter e no Tumblr, o perfil KDmulheres questiona a presença feminina: “Será que a diversidade não importa para a organização do evento?”
Mas é importante repetir: não é a primeira vez que a Flip decepciona nesse sentido. Autoras nunca foram maioria no evento. Elas sequer chegaram perto de um empate. Em 2014, entre os 44 convidados da Flip, apenas 7 eram mulheres. Das suas 12 edições, apenas uma escritora foi homenageada — Clarice Lispector, em 2005.
Conversei com a autora brasileira Andrea del Fuego, ganhadora do Prêmio Saramago de 2011 por seu primeiro romance, Os Malaquias (ed. Língua Geral). “Já sentiu dificuldades de publicar? Já se sentiu preterida em relação aos autores homens?” — pergunto. “Nunca me senti preterida em relação aos homens, não na literatura, mas na vida, sim. A resposta é ambígua, porque estando a literatura na vida, acho que sublimei alguma coisa no caminho”, responde.
Em um artigo publicado na semana passada no jornal britânico The Guardian, a escritora paquistanesa Kamila Shamsie desafiou editoras a publicarem apenas obras escritas por mulheres. “Eu diria que é tempo para todos, homens e mulheres, de começarem uma campanha para corrigir a desigualdade. Por que não ter um ano de publicação de mulheres? 2018, o centenário de mulheres com mais de 30 anos conquistando o direito ao voto no Reino Unido, parece apropriado”, escreveu.
Em resposta à Kamila, Sophie Lewis, editora-chefe da pequena editora britânica And Other Stories, disse que sua equipe irá reagendar o lançamento de livros de escritores do sexo masculino para outros anos, e procurará mulheres que queiram publicar em 2018. “Vamos acabar nos tornando uma espécie de modelo em pequena escala para uma pergunta muito maior sobre por que a escrita feminina é consistentemente marginalizada ou secundária”, disse.
No último domingo, dia 14 de junho, a Confeitaria lançou o seu primeiro fanzine, uma antologia de textos e ilustrações que tem o tempo como tema. Dos 25 autores e colaboradores do projeto, 16 são mulheres. Antes, em março deste ano, lançamos também o nosso segundo livro, Não Conheço Ninguém que Não Seja Artista, uma conversa entre duas autoras: a escritora Ana Guadalupe e a fotógrafa Camila Svenson. Desde que nos tornamos um selo editorial, em 2014, essa tem sido uma preocupação consciente da Confeitaria, o empenho em contribuir para equilibrar as estatísticas: em nosso primeiro livro, as mulheres já eram maioria.
No texto Vida de Escritora, Clara Averbuck diz: “O trabalho dos escritores sempre tem mais valor do que o meu, mesmo que a minha literatura tenha a mesma qualidade que a deles. Porque eu sou mulher. Porque quando eu encontro um editor na Flip, em Paraty (onde apenas 15% dos autores convidados eram mulheres) ele comenta que emagreci e estou bonita, não sobre meu livro novo ou meu financiamento coletivo. Porque quando te elogiam falam que você escreve “tão bem quanto um homem”. Porque as editoras querem colocar os livros “de mulher” todos na mesma categoria. Literatura feminina. Como se isso existisse. Como se fosse um subgênero. Não é, gente. Não é.”
Para as premiações, talvez os livros “de mulher” sejam tratados como subgênero. Ao menos, eles são menos propensos a ganhar prêmios. É o que diz a notícia de uma semana atrás do jornal britânico The Guardian: uma análise das seis maiores premiações literárias do mundo durante os últimos 15 anos demonstrou que livros com protagonistas masculinos costumam ser os premiados.
O estudo de Regina, comentado mais acima, também destaca narrativas predominantemente masculinas. Nos 258 romances analisados por ela, 62,1% dos personagens importantes eram homens e, entre os protagonistas, eram uma maioria ainda mais expressiva: 71,1%.
Por Skype, pergunto a Joanna Walsh sobre a repercussão de sua hashtag, mais de um ano depois e além do Twitter. A inglesa me disse que através da campanha, ficou conhecendo outras realidades, na qual os dados se repetem, quando não se agravam. Recentemente, uma editora do Nepal lhe disse que as mulheres por lá raramente são publicadas. E, quando são, seus livros são categorizados como novelas e não são considerados literatura. Essa mesma editora disse que pouquíssimas mulheres ocupam cargos de liderança no mercado editorial. Na Grã-Bretanha, mulheres e homens são publicados em números relativamente iguais, afirmou Joanna, que acredita que o machismo na literatura britânica é mais sutil, mas permanece: “Por exemplo, os livros escritos por mulheres muitas vezes são promovidos como adequados apenas para leitoras.”
Esse não é um texto que quer explicar os sintomas que Regina apresentou em sua pesquisa. Talvez a ótima reportagem do Suplemento Pernambuco, A insustentável existência do outro, já tenha feito isso. Nela, a autora Carol Almeida faz um paralelo entre a reivindicação de Virginia Woof em um ensaio de 1929 — Woolf falava sobre as “dificuldades materiais” de escrever que tinha a mulher sem a emancipação de um teto para chamar de seu, do dinheiro próprio ou da autonomia em dizer que não estava ali pra te servir um chá — e o cenário que tem uma escritora atual. O que é proposto aqui é a legitimização da reivindicação. Mulheres — ao menos as que ousam notar e falar sobre o machismo no mercado como Luisa Geisler, Joanna Walsh e Clara Averbuck — estão provocando. Querem reconhecer o sintoma para legitimar a luta. Claro, aqui seria bem-vinda uma justificativa com base histórica. Um especialista poderia elucidar os porquês de mulheres serem preteridas no meio literário. Ele provavelmente diria que em qualquer ramo artístico a coisa se repete, e que a domesticação feminina priorizou outras atividades e atrasou nosso lugar em centenas de situações, especialmente as intelectuais ou as de liderença. Mas disso, a gente já sabe bem.
O mundo de hoje — falo aqui do mundo ocidental — ainda é um lugar predominantemente heteronormativo, branco e especialmente privilegiado para homens. No entanto, é importante reforçar: enquanto essa lógica se manter, seja nas antologias, nos números de pesquisas ou na Flip, e enquanto houver abismos de oportunidades e direitos entre pessoas, a voz das margens deve ser ecoada. Mulheres são menos publicadas — ao menos nas grandes editoras –, ganham menos prêmios e participam menos de feiras literárias; e isso deveria bastar pelo textão.
Matéria de Natacha Cortêz