ATÉ TU, BRUTO?
Há histórias que, embora perfeitamente conhecidas, continuam a exercer sobre o mundo, ou sobre parte dele, o solene fascínio dos sonhos e dos vaticínios. Assim é, por exemplo, o relato da Paixão de Cristo: todos sabem que Jesus será preso, morto e sepultado, que descerá à mansão dos mortos e ressuscitará ao terceiro dia; ainda assim, a cena se repete todos os anos na mente de boa parte da humanidade, sem perder, ao longo das infinitas refrações, seu impacto profundo sobre o coração humano. O mesmo acontece com a morte de Júlio César. Há 2061 anos, o grande conquistador tombava no Senado romano, apunhalado 23 vezes por seus antigos aliados – entre eles, o amigo dileto e talvez filho bastardo, Marco Júnio Bruto. Reza a lenda que, ao reconhecer aquele rosto, em meio à agitada selva dos punhais, César teria lançado suas palavras derradeiras, recordadas pela posteridade em duas variantes. Segundo um antigo boato – referido, mas não corroborado, por Suetônio, Plutarco e outros –, a frase teria sido pronunciada em grego, língua falada pelos romanos cultos, Kai su, teknon: “Tu também, filho?”. A segunda versão foi cunhada por latinistas da renascença, já no século XVI, e até hoje é utilizada para denotar aquela mistura de escândalo e incredulidade que nos afeta ao descobrirmos uma traição inesperada: Et tu, Brute? - Até tu, Bruto? Esse epigrama fatídico e talvez imaginário ganhou imensa popularidade graças a William Shakespeare, que o incluiu em uma cena crucial na TRAGÉDIA DE JÚLIO CÉSAR, escrita muito provavelmente em 1599 – cerca de um ano após HENRIQUE V, e um ano antes de COMO GOSTAIS e HAMLET.
Quando Shakespeare sentou-se para compor seu relato de traições honradas e amizades traiçoeiras, o enredo da peça já era perfeitamente conhecido por todo inglês educado. Ainda assim, o autor soube encontrar, no repisado conto, aquele espírito universal que faz uma narrativa derrotar o tempo, as repetições e até o conhecimento prévio da plateia. Não há maior criadora de spoilers do que a própria História: mas o escritor de gênio sabe fazer dessa dificuldade uma virtude. Nas mãos do Bardo, a antevisão dos acontecimentos se transforma em um recurso que acentua o drama, em vez de desgastá-lo. A tática Shakespeariana em Júlio César haveria de se incorporar, séculos depois, à palheta dos filmes de suspense: nós sabemos, sim, o que está para acontecer; mas os personagens não sabem. A tensão entre a iminência dos fatos, que já conhecemos, e as ações dos personagens, que os ignoram, resulta em aguçado efeito estético, cuja urgência jamais de esgota e cujo vigor não envelhece. “Cuidado com os Idos de Março”, alerta o Vidente, no início da peça – todas as plateias do mundo sabem que ele está certo; para César e seus seguidores, contudo, essa pode ser apenas a voz de um louco. As hesitações, renitências, premonições, devaneios e arroubos de romanos e romanas, para quem o futuro é uma treva mutável, contrastam com a engrenagem implacável do destino; enquanto isso, meteoros e relâmpagos rasgam o céu num dilúvio de agouros – indecifráveis para os personagens da peça, nítidos para nós. Desenhadas neste fundo claro-escuro, a grandeza e a pequenez humanas se sobressaem com trágica e elegante nitidez. Uma das passagens que exacerbam esse efeito é a própria cena do assassinato. Sem saber que está prestes a morrer, César pronuncia um dos mais retumbantes autoelogios da literatura – aqui reproduzido em minha própria tradução:
“Eu sou constante como a estrela boreal
de cuja natureza firme e inamovível
não há qualquer rival em todo o firmamento.
Com fagulhas sem conta o céu está pintado:
todas são fogo e, como fogo, todas ardem;
porém, apenas uma é fixa e não se move.
Assim, no mundo: é vasta a provisão de homens,
homens de carne, e osso, e alma, e pensamento;
mas na constelação humana, eu só conheço
um único capaz de se manter imóvel,
alheio às mutações, perene: e ele sou eu.”
Poucas linhas depois, Júlio César cairá aos pés da estátua de Pompeu, co a toga perfurada, encharcado de sangue. Tragédia e ironia se combinam, aqui, em um equilíbrio talvez inigualável.
A obra, contudo, não se encerra com a morte do personagem-título: os dois atos finais tratam do destino de Bruto e dos demais conspiradores. Vale aqui mencionar, aliás, uma peculiaridade distintiva desta “peça romana”: é muito difícil, senão impossível, decidirmos se o protagonista do enredo é de fato Júlio César, como sugere o título, ou eu principal assassino, Bruto. Em termos de intriga política, Shakespeare cria uma situação maravilhosamente ambígua: durante toda a peça, as simpatias da plateia são lançadas continuamente entre um lado e outro, até assentar, em uma espécie de “imparcialidade filosófica” (a expressão é de Coleridge). César, em alguns momentos, surge como figura heroica, carismática, dotado de uma grandeza autoconsciente; em outros lances, é um velho orgulhoso, cheio de achaques, cruel, ciumento e tirânico. Para acentuar o lado demasiado humano do personagem, Shakespeare até lhe inventou uma enfermidade: na peça, César é surdo de um ouvido, coisa que nenhum historiador antigo menciona. Mesmo sublinhando essas e outras fraquezas do ditador romano, Shakespeare não nos deixa simpatizar completamente com seus algozes: a maioria age mais por inveja do que por dever cívico. A exceção é o próprio Bruto. Na Divina Comédia, Dante colocou-o no mais profundo círculo do inferno, para purgar eternamente a suprema traição; Shakespeare, contudo, não o representa como um vilão, mas como um homem de rigorosa consciência, hesitante entre o cumprimento de dois deveres sagrados. Por um lado, César é seu amigo; por outro, César é ambicioso, tende à autocracia, ameaça a tradição da República. Após muita reticência e remordimento, Bruto acaba decidindo que deve amar Roma acima de César. Mas a dolorosa escolha não serena suas atribulações: perseguido pelo vingativo fantasma do amigo morto e caçado pelos exércitos de Marco Antônio, bruto acaba seus dias à mais romana das maneiras: caindo sobre a própria espada. E só assim, quando se fecha o círculo do tempo e o compasso da Fortuna, os espíritos de Bruto e César podem descansar, lado a lado, no Além e na memória humana.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/José Francisco Botelho (Escritor, tradutor de ROMEU E JULIETA e a traduzir JÚLIO CÉSAR para a Penguin/Companhia das letras) em 22/04/2016.