O UNDERGROUND NO MAINSTREAM
Doutor em Teoria e História Literária trata do escritor Thomas Pynchon, cuja linguagem excedia os padrões da sociedade.
A literatura pós-moderna existe hoje sob o peso de duas ameaças: a da crítica que, viúva dos escombros daquilo que não conseguiu resistir ao tempo, é refratária a tudo o que se apresenta como novo; e a do anti-intelectualismo que se traveste de vestimentas variáveis, ora como guardiã do mito da horizontalidade radical de todos os objetos (onde Hamlet e Jack Bauer são igualmente heróis, igualmente discursivos, e igualmente válidos) ora em uma irritante – porém honesta – rejeição a tudo aquilo que se oponha a tratar o interlocutor como um rei.
Para o leitor médio, acostumado à adulação discreta de seus autores medíocres, esse tipo de literatura mais sofisticada é uma chave dourada que promete abrir uma porta há muito já arrombada. A pós-modernidade, enquanto proposta estética literária, parte do princípio de que o cânone já foi lido, relido e que agora precisa ser vencido, ultrapassado, incorporado como tradição regurgitada e manipulada como artefato simbólico.
O estadunidense Thomas Pynchon é hoje aparte mais rútila desse tipo de fenômeno cultural, um escritor que enfrenta o desafio de escrever livros extensos, densos com pouquíssima preocupação com a recepção das obras e nenhum compromisso com a construção de um culto à imagem de autor. Se você quer o entretenimento, sugiro o PlayPlus, Netflix, e as formas de streaming que prometem – e cumprem – uma distração das esteiras constantes da desgastante vida. De resto, o que Pynchon faz é atacar de forma consistente a vergonhosa tentativa de domesticação da literatura enquanto manifestação artística.
Para entender suas obras é preciso, antes, entender seu compromisso de fazer a linguagem escapar das limitações da vida cultural nas sociedades ocidentais, de seus regramentos, de sua tendência à repetição de modelos, de padrões e de dinâmicas estéreis. Essa é, portanto, uma literatura política, fruto de um projeto de enfrentamento que dificilmente vai interessar a um país onde o sistema literário parece padecer de um delírio esquizofrênico prolongado. Explico: por um lado atribui-se à literatura certas potencialidades metafísicas, que escapariam das amarras materialistas de uma análise (e não estou sendo irônico aqui) séria. Para quem pensa assim, a literatura estaria acima do preço das coisas, das reivindicações contra um novo regime de previdência pública, do futebol, do preço do gás, do estado de conservação dos encanamentos do condomínio, da vida, afinal. Para esses – e é isso que me diverte – a literatura é aquilo que nos tira da barbárie, mas que não possui nenhum contato com a barbárie.
Eu poderia tranquilamente conviver com esse raciocínio, o de que o campo da literatura é o da metafísica improdutiva, o do fazer gol sem saber o motivo, o da emocionalidade boçal, porém suntuosa, de beleza inefável. Sim, eu poderia tomar como verdadeira essa concepção, possivelmente fruto de um distúrbio cognitivo elementar e de um conjunto de faculdades de Letras sem disciplinas de Teoria Literária (com muito Wood e nenhum Eagleton; muito Bloom e nenhum Hegel). Eu poderia, é claro; só que não vou.
Qualquer indivíduo que tenha passado pela força de um Ensino Médio bem resolvido sabe que a literatura não está fora do mundo, e sim irremediavelmente dentro dele. E que a leitura não é um processo metafísico, e sim uma complexa construção humana que depende de elementos bem reais: cognição e sentido. Sem isso, não há possibilidade de raciocínio e sem raciocínio não há literatura. Não poderíamos edificar cursos de Letras, oficias de escrita criativa e workshops de redação literária sem que tivéssemos reconhecido a especificidade técnica dessa área? E se há técnica há obrigatoriamente possibilidade de industrialização, de sistematização mecânica, de controle, de redução.
Quando chamei a estrutura de nosso sistema literário de esquizofrênica, fazia menção justamente a essa realidade exclusória: ou a literatura é metafísica, e nesse caso nossos cursos, nossos métodos de análise e nossas oficinas não passam de charlatanismo e picaretagem intelectual; ou a literatura é um produto material de condições sociais específicas que sobre ela incidem, influenciando em sua produção e condicionando sua recepção. Na vida real o gato não pode estar morto e ao mesmo tempo vivo.
A essa altura você já notou que meu argumento aqui é a falta de um conceito de literatura por essas bandas, algo que parece atravancar não apenas a circulação das obras pós-modernas como também a produção crítica sobre elas. A forma resenha, no Brasil, tem como objetivo fazer uma divulgação positiva do livro, propagandear os autores, como se o crítico fosse um feirante anunciando a melancia de recheio mais doce ou o tomate mais apropriado para o molho.
Esse texto tem como objetivo apontar para um tipo de autor que não pode ser pasteurizado. E se por causa dele você deseja começar a ler Thomas Pynchon, recomendo que procure por MASON & DIXON; passe para O LEILÃO DO LOTE 49, e só então, depois de reler os dois, depois de tomar muito café, leia ARCO-ÍRIS DA GRAVIDADE. Esqueça a bobagem dos mitos biográficos: que Pynchon é na verdade Jim Morrison; que Pynchon já apareceu em oito episódios dos Simpsons; que Pynchon é Bob Dylan, e que o comitê sueco sabia disso, dando a ele o prêmio Nobel por esse motivo.
Esqueça também as estratégias que prometem uma imersão controlada no universo Pynchoniano. Deixe a moderação de lado. Destrua a tentação narcisística de começar por aquilo que compreende. Tudo isso é ruído e ruído não ajuda na decodificação do tecido literário. Isso não vai ajudá-lo a entender os livros de Pynchon, que têm sempre muitas páginas onde os personagens não são claramente formais, onde a forma desforma e onde o narrador procura corromper o que é narrado.
É preciso muita disposição para encarar esses autores. Esses livros, os livros de Pynchon, são obras que demandam alta capacidade de interpretação textual – um esforço que o jornalismo cultural não parece interessado em fazer. Argumenta-se, aqui e ali, que alguns autores são irresenháveis e que Pynchon é somente mais um deles. A prateleira honrosa e solitária seria, pelas circunstâncias de nossa crítica literária, seu lugar mais adequado. É, eu poderia conviver com isso também. Mas eu sei – você sabe – que não vou. Prefiro apostar na hipótese de que as palavras, quando regradas pela gramatologia dos esquemas dogmáticos, oferecem dialeticamente a denúncia libertadora de suas limitações.
Ficou difícil? Pois é.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Luiz Maurício Azevedo/Doutor em Teoria e História Literária, pela UNICAMP, autor de POR UMA LITERATURA MENOS ORDINÁRIA (Editora Figura de Linguagem), em 16/02/2019.