A GÊNESE DO GENOCÍDIO
Há 100 anos tinha início o massacre do povo armênio, na atual Turquia. Negar-se a coloca-lo entre os maiores crimes contra a humanidade impede que tragédias similares sejam evitadas.
Autoridade máxima da Igreja Católica, os papas também têm, uma preocupação especial com cristãos de outras denominações. Em 1915, o pontífice Bento XV enviou uma carta ao sultão Mohamed V, do Império Otomano, pedindo o fim das crueldades contra o povo armênio, em sua maioria seguidor da Igreja Armênia Apostólica, que vivia na atual Turquia: “Fale com suas palavras poderosas e inspiradoras de paz e de perdão para que eles não sofram mais violência nem perseguição. O povo armênio abençoará o nome do seu protetor”. A resposta do sultão demorou quatro meses, e ele nada fez para conter a morte de 1,5 milhão de armênios nos oito anos seguintes. No domingo 12 de abril, o papa Francisco voltou ao tema: “No século passado, nossa humanidade viveu três tragédias sem precedentes. A primeira, vista geralmente como o primeiro genocídio do século XX, golpeou o vosso povo armênio”. Em vez de provocar uma resposta vazia como a do sultão, a declaração enfureceu o governo de Ancara. “Condeno o papa e vou adverti-lo. Espero que não volte a cometer o mesmo erro”, disse o presidente turco Recep Erdogan.
A negação do genocídio armênio é um dos poucos elementos em comum entre todos os governos que a Turquia já conhece desde a queda do Império Otomano, em meio à I Guerra Mundial. O artigo 301 do Código Penal considera crime contra a pátria turca a mera referência ao massacre como um “genocídio”. O termo foi cunhado em 1943 pelo advogado polonês Raphael Lemkin em um livro sobre a Europa ocupada pelos nazistas que também menciona o caso armênio. Ainda que o genocídio tenha ocorrido três décadas antes da invenção do léxico, não há dúvida de que ele é adequado para classificar os acontecimentos entre 1915 e 1923 na Turquia. A palavra genocídio, em sua origem, define um ato deliberado para aniquilar, em todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Trata-se, sempre, de um ato político. “Um genocídio não é como um terremoto ou um tsunami. Tampouco é uma explosão espontânea de ódio entre grupos humanos. É uma escolha política, que exige planejamento e recursos”, diz o professor de direito internacional iraniano Payam Akhavan, da Universidade McGill, no Canadá. A data mais marcante no caso armênio é 24 de abril de 1915, quando forças do governo prenderam 300 intelectuais, políticos e líderes religiosos armênios em Istambul. Eles foram torturados e enforcados ou mortos a tiros. Depois, milhares de armênios que estavam nas Forças Armadas tiveram o mesmo fim. Ordens eram enviadas por telégrafo pelo Ministério do Interior, em Istambul, para que os cidadãos armênios fossem arrancados de casa e colocados a bordo dos trens que partiam para o deserto da Síria, que naquele tempo pertencia ao Império. As casas, fazendas e outros bens dos armênios não eram destruídos. Uma agência oficial foi encarregada de organizar a transferência dessas propriedades aos turcos. Como muitos armênios eram comerciantes e industriais, e portanto tinham um padrão de vida melhor do que a média, isso incentivava mais confiscos e deportações. Os armênios expulsos também foram exterminados por milícias curdas ou por batalhões formados por presos libertos. A maioria nem sequer chegou aos campos no deserto, pois morreu de fome, sede e frio no caminho. Mulheres e meninas foram violentadas e tomadas como escravas.
A posição do governo turco é que nunca houve uma intenção coordenada de aniquilar o povo armênio. O que existiu, segundo essa versão, foi uma resposta dada em tempos de guerra a uma ameaça interna: a guerrilha armênia, que apoiou a luta contra os otomanos. “Um genocídio é sempre apresentado como uma ação de legítima defesa por parte dos que se dizem sob ameaça. Mas são eles, na realidade, os perpetuadores do genocídio”, afirma o advogado e professor de direitos humanos canadense René Provost, e completa: “Os alemães diziam que os judeus eram uma ameaça. Em Ruanda, os hutus se diziam vítimas da minoria tutsi”.
O termo cunhado por Lemkin encontrou no holocausto o seu paroxismo, cuja revelação para o mundo também faz aniversário. Há setenta anos, em abril de 1945, quando a II Guerra Mundial se aproximava do fim, as tropas russas e aliadas liberaram sete campos de concentração nazistas, descobrindo e expondo atrocidades inimagináveis. Em 1948, uma convenção da ONU sobre genocídio criou as bases para a prevenção e a punição desses atos. Embora clara, a conclusão não traçava parâmetros que pudessem ser usados para uma intervenção internacional. Desde a II Guerra, houve três episódios que podem ser facilmente incluídos na definição. Em 1994, membros da maioria hutu, estimulados pelo governo, chacinaram 800 000 tutsis em Ruanda. No ano seguinte, na antiga Iugoslávia, os sérvios começaram a matar bósnios e croatas. Estima-se que 100 000 morreram. Em 2003, o governo de Omar Bashir, no Sudão, enviou milícias árabes para aniquilar a população de 400 vilas na região de Darfur. O extermínio alcançou 300 000 pessoas. A comunidade internacional falhou em evitar essas tragédias. Quando o massacre de Ruanda estava em andamento, uma funcionária do Conselho Nacional de Segurança (CNS) dos Estados Unidos chegou a afirmar que, se o governo americano chamasse o episódio de genocídio sem fazer nada, isso prejudicaria os democratas nas eleições para o Congresso. A autora da frase é Susan Rice, a atual chefe do CNS.
Alguns estudiosos consideram que a definição de genocídio é muito estreita. Os 2 milhões de mortos nas mãos do Khmer Vermelho, no Camboja, e os expurgos do soviético Josef Stalin não entram na categoria porque tinham motivação ideológica, e não étnica ou religiosa. Menos controversa é a atribuição de crimes de genocídio a grupos terroristas. “As atenções do mundo sempre estiveram voltadas a genocídios cometidos por Estados nacionais, mas grupos como o Isis estão mudando essa percepção”, diz o americano Tod Lindberg, que coordenou uma comissão sobre prevenção de genocídio na ONU. No ano passado, ao conquistarem territórios no norte do Iraque, os radicais islâmicos do Isis entraram em vilas da minoria religiosa yazidi. Os homens foram imediatamente exterminados. As mulheres e as meninas, a exemplo do que aconteceu no genocídio armênio de 1915, foram escravizadas e estupradas. Nas montanhas do Sinjar, no Iraque, milhares de yazidis morreram de frio, fome e sede. A rápida identificação e classificação de um genocídio pode ajudar a contê-lo mais cedo. Isso fica mais fácil quando se tem também a coragem de reconhecer os genocídios do passado. O Brasil e os Estados Unidos evitam chamar a tragédia de 1915 de genocídio. Cem anos depois, é hora de dar um passo à frente.
Por Duda Teixeira com reportagem de Paula Pauli.
O CASO AMERICANO
Genocídio, limpeza étnica ou uma sequência de atrocidades? Desde o ano em que Cristóvão Colombo pisou nas Américas, em 1492, a população indígena que hoje é o território dos Estados Unidos despencou de 10 milhões para 300 mil. Segundo alguns historiadores, as comunidades indígenas sofreram uma perseguição institucionalizada com o intuito de exterminá-las, o que caracteriza genocídio. Contudo, o largo espaço de tempo e a variedade de fatores que causaram a redução dessa população levam a crer que o conceito só pode ser aplicado em situações específicas. As doenças trazidas pelos europeus foram o que mais matou indígenas. Uma dezena delas contaminou os nativos em quase 100 ondas epidêmicas entre 1600 e 1800. A mais letal foi a varíola. Houve contágio intencional, mas essa não foi a regra. O avanço em direção ao oeste em busca e outras riquezas obrigou os índios a abandonar terras que cultivaram por gerações. Sem comida, doentes e ameaçados pelo Exército, milhares morreram no caminho. Genocídio? Não há consenso em relação a isso, pois o intuito de extermínio não estava explícito. Em outras ocorrências, fica evidente. Nos anos 1650, a colônia britânica de Massachusetts massacrou a tribo pequeot, que vivia onde hoje é Connecticut, e vendeu os sobreviventes como escravos. “Eles queriam erradicar a cultura e o povo pequeot. Nesse caso, não há dúvida de que houve um genocídio”, diz o historiador Justin Power, da Universidade West Virgínia. Fatos similares aconteceram mais de 200 anos depois na Califórnia, quando o estado ofereceu prêmios em dinheiro por índio assassinado. (De Nathalia Watkins)
Fonte: Revista Veja/créditos conforme mencionado acima.