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Festival Porto Alegre Noir II
Festival Porto Alegre Noir II

UM PASSEIO PELO LADO ESCURO DA EXPERIÊNCIA HUMANA

 

A capital gaúcha recebe (recebeu até 14 de abril), até este domingo, o FESTIVAL PORTO ALEGRE NOIR II. O evento, iniciado na terça-feira (09 de abril), na Cinemateca Capitólio, é uma das raras oportunidades para que se discuta um gênero normalmente não levado muito a sério. Pelo menos para a crítica formal.

 

Em seu ensaio A SIMPLES ARTE DE MATAR, Raymond Chandler sugere causas para os narizes torcidos que separaram a grande literatura e a literatura de entretenimento. “Em geral, o tema é assassinato, e isto por si só retira da história o elemento de elevação espiritual”, diz o autor, sem esconder alguma dose de mágoa, ele mesmo tornado ícone do gênero até hoje agrilhoado a uma espécie de segunda divisão das letras. Impossível não levar em conta os argumentos de Chandler. Mas não é difícil ampliá-los.

 

Enquanto o romance policial esteve restrito às seções de mistério, com Arthur Conan Doyle ou, depois, Georges Simenon e Agatha Christie, poucos se preocupavam em classificá-lo como maior ou menor. Era um produto que vendia bem, encantando o público tanto pelas peculiaridades de seus protagonistas quanto pelas tramas intrincadas que tinham como objetivo o final surpreendente de cada enredo.

 

Facadas, envenenamentos, falsos suicídios, médiuns charlatões, tudo visto de longe. Quem é vilão? Quem está por trás de tudo? Enquanto a grande massa pré-televisiva se fazia essas perguntas devorando pocket books descartáveis nas filas do metrô ou nos intervalos do lanche, a literatura de primeira grandeza lapidava a plástica das palavras em dramas existenciais, intimistas. Que os autores policiais seguissem com suas tramas espetaculares com personagens ocos ou caricatos. Porém, quando a lógica dicotômica foi quebrada, revelando arquétipos ficcionais tão falíveis quanto os próprios leitores, deu-se um aviltamento. Para a alta crítica, começava um verdadeiro ultraje. Como um autor de histórias de detetive se atreveria a pisar no terreno das grandes questões da experiência humana?

 

Como o título dado ao gênero sugere, havia menos luz. E não era mais o “final da história” que importava, mas os eventos que se impunham como uma proposta tácita de reflexão feita ao leitor no caminho percorrido entre a capa mole e a última página de papel ordinário.

 

Largamente adaptado ao cinema, o que o gênero noir apresenta, surgindo entre a prosa de entretenimento e as letras cultas, é mais que uma simples ruptura. É uma fusão de ingredientes; uma mistura improvável mas irresistível para muitos.

 

Certamente há tanto ou mais brutalidade e sordidez em Sófocles, Shakespeare, Vitor Hugo, Stendhal e Hemingway do que em Chandler ou seus colegas de segmento David Goodis, Dashiell Hammett e James M. Cain. Também nos dois escalões se fala em medo, culpa, traição, vergonha, ciúmes, cobiça e chantagem. No caso do romance noir, porém, tudo se faz mais de perto. Como a diferença entre um soldado que precisa derrubar um inimigo com um rifle de longa distância ou com uma baioneta enferrujada. O resultado é o mesmo. Mas o caminho é mais duro. Todo mundo sabe o que corre por dentro dos esgotos, mas ninguém gosta muito de passear por lá. E o que os autores do romance negro norte-americano fizeram foi levar seus leitores para uma saída de campo. Se a alta literatura fala das engrenagens da estrutura social, o romance noir caminha pelas suas entranhas. Neste sentido, sim, um passeio pelo lado mais sombrio da estética ficcional.

 

Em boa parte, os romances noir são narrados em primeira pessoa. “Eu conto os meus segredos e você só precisa refletir sobre os seus”, é o que parecem dizer as vozes que servem de veículo às narrativas. Neste tom confidencial, de proximidade e mesmo com um quê fraterno, somos apresentados a homens que poderiam ser nossos vizinhos. Ou nós mesmos.

 

Quando o personagem principal é um alcoolista fracassado, que oi expulso da polícia, acorda tarde, mora mal, gosta de jogo, fala a língua das ruas, arromba portas, se envolve com mulheres casadas e troca sopapos com quem encontra ao longo do dia, sentimo-nos purgados, absolvidos por eventuais faltas de decoro. Ou por não conseguirmos chegar à perfeição exigida pelas metas das grandes corporações onde ganhamos a vida, por nossas roupas surradas de magazine, pelo desrespeito com que nos tratam as centrais de cobrança, por nossas pilhas de carnês atrasados. Obviamente que esta identificação terapêutica não é a meta de qualquer autor: afinal, a arte não precisa – e há quem diga que nem deve – ter objetivos práticos, mas não se pode negar que ela exista.

 

Deixando de lado clichês datados – carros enormes, gente fumando sem parar até nos hospitais, homens de terno e chapéu, mesmo quando pobres de doer – as agruras dos personagens do noir norte-americano são os horrores do homem comum, real, feito de carnes e ossos e vontades. Seja ele o sujeito que passa um terço da vida apertado como sardinha em lata no ônibus, seja ele membro de uma família abastada o suficiente para padecer dos desajustes do ócio.

 

O romance negro é também mais democrático, pois, além das penúrias da gente comum esmagada, economicamente, fala sem pudores sobre as degenerações das classes mais ricas. Trata de filhos ilegítimos, ricaços viciados em barbiturícos, fraudes em seguros, incestos, trapaças por heranças, governantes corruptos e mulheres que são infelizes mesmo vivendo como rainhas.

 

Chester Himes, pouco mais jovem na linha do tempo, tornou mais aguda a crítica social do gênero. As constatações, até então mais ou menos veladas, foram elevadas à categoria de leit-motiv. Na América onde todos deveriam ser iguais, Himes construiu a si próprio apesar de sofrer as penas de ser “menos igual” por pelo menos uma característica: ser preto. Expulso da universidade, logo passou a cumprir pena por roubo a mão armada. Foi quando começou a escrever sobre os guetos onde chegar ao fim do dia era uma aventura para poucos, sobre as diferenças entre as vidas de pretos e brancos, sobre a falta de oportunidades que sufocava boa parte dos norte-americanos.

 

A seu modo, Himes antecipava outra ruptura, que viria com a geração beat e, logo a seguir, com a contracultura. Neste ponto, porém, quando se começa a falar da “elevação espiritual” mais desconectada da vida mundana, abordada por Chandler em seu ensaio, os autores noir ainda seguem desautorizados.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Gustavo Machado/Jornalista e escritor; autor dos romances SOB O CÉU DE AGOSTO, MARCHA DE INVERNO e CAVALOS E ARMAS, em 13/04/2019