O VISITANTE TARDIO
Escritor Sinval Medina analisa a coletânea de contos e uma peça, BLUMFELD, UM SOLTEIRÃO DE MAIS IDADE E OUTRAS HISTÓRIAS, de 2018, de Franz Kafka
Dez anos após a última aparição sem escalas de Kafka no Brasil (A METAMORFOSE, Ed. Hedra, 2009 na competente tradução de Celso Donizete Cruz), o autor tcheco está novamente entre nós. Desta vez o anfitrião é o gaúcho Marcelo Backes, que acaba de publicar a coletânea BLUMFELD, UM SOLTEIRÃO DE MAIS IDADE E OUTRAS HISTÓRIAS (Civilização Brasileira, 2018).
A leitura de BLUMFELD remeteu-me aos meus primeiros contatos com Kafka, lá pelos idos de 1960, quando ouvi falar pela primeira vez num judeu de Praga chamado Franz Kafka, que teria publicado em vida uma única obra: a história de um rapaz transformado numa repugnante barata. Mesmo antes de ler A METAMORFOSE, Kafka tornou-se para mim um personagem familiar pelas lendas que cercavam seu nome. Dizia-se que morrera jovem, praticamente inédito. Que não participava da vida literária. Que jamais saíra de Praga. Que padecera de tuberculose desde moço. Que tivera uma única namorada durante toda a vida.
Nada disso era verdade. Kafka não morreu adolescente como nossos românticos – Álvares de Azevedo, aos 20 e Casemiro de Abreu, aos 21. Ou o meteórico Raymond Radiguet, francês falecido em 1923, aos 20 anos, depois de publicar com estrondoso sucesso o romance LE DIABLE AU CORPS. O autor tcheco viveu até 41 anos de idade; ficou noivo três vezes e teve várias amantes; formado em Direito, fez carreira em uma importante companhia de seguros; frequentava os salões literários de Praga; era poliglota; visitou grandes centros culturais europeus (Viena, Berlim, Munique, Milão, Paris). Embora tenha publicado pouco de sua vasta obra, não morreu “quase inédito”. Estreou em 1908 na revista Hyperion, com prosas reunidas em volume em 1912. A METAMORFOSE, novela escrita em 1912, é editada em 1915; no mesmo ano recebe o prestigioso prêmio Fontane de Literatura e, em Munique, faz leituras públicas de Na Colônia Penal. Em 1916 publica O VEREDICTO. Menos de três anos depois sai NA COLÔNIA PENAL. Em 1924 aparece, postumamente, a coletânea de contos UM ARTISTA DA FOME.
É certo que Kafka não alcançaria reconhecimento em vida. Vale lembrar um episódio relatado por Otto Maria Carpeaux (1900/1978), historiador e crítico austríaco refugiado do nazismo no Brasil. Em visita a Praga, ainda muito jovem, Carpeaux compareceu a uma reunião de intelectuais tchecos ciceroneado por um amigo, que o apresentou aos escritores locais que “valia a pena conhecer”. Reparando num tipo tristonho que o observava de longe, perguntou: E aquele, quem é?” Ao que o amigo respondeu: “É Franz Kafka. Não tem a menor importância”.
Assim, o encontro entre Kafka e Carpeaux se limitou a uma breve troca de olhares, mas caberia ao crítico o primeiro estudo em língua portuguesa sobre o escritor “sem importância” que conhecera de relance em Praga. Franz Kafka e o mundo invisível foi publicado em 1941 no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Em 1952, Carpeaux assina o ensaio “Kafkiano” nas páginas do Diário Carioca. Só em 1956, porém, surge a primeira edição de A METAMORFOSE pela Civilização Brasileira (por Brenno Silveira, a partir de uma tradução inglesa). Em 1957 aparece pela Philobiblion uma edição restrita de trechos kafkianos selecionados e traduzidos por Geir Campos sob o título PARÁBOLAS E FRAGMENTOS. No mesmo ano, UM ARTISTA DO TRAPÉZIO (sem menção ao tradutor) é incluído na antologia MARAVILHAS DO CONTO ALEMÃO, organizada por Diaulas Riedel para a Editora Cultrix.
Até então Kafka era privilégio de iniciados que o conheciam em línguas estrangeiras (francês, inglês, italiano, espanhol, além do alemão). A partir de 1964, novas edições dão início a uma verdadeira febre kafkiana no país. O paulista Torrieri Guimarães traduz O CASTELO e em sequência O PROCESSO, AMÉRICA, DIÁRIO ÍNTIMO, UM ARTISTA DO TRAPÉZIO, AS MURALHAS DA CHINA. Em 1969, a Civilização Brasileira publica, em um só volume, A METAMORFOSE, NA COLÔNIA PENAL e O ARTISTA DA FOME. A partir dos anos 70 no Brasil diferentes editoras lançam suas obras.
Mas, até 1983, o autor tcheco só chegava ao público brasileiro por via indireta. Leandro Konder e Eunice Duarte, tradutores respectivamente de NA COLÔNIA PENAL e O ARTISTA DA FOME, se baseiam em edições francesas. Brenno Silveira, como vimos, vale-se do inglês. A fonte de Torrieri Guimarães, que assina as “obras completas” de Kafka é controversa. Talvez o francês, talvez o espanhol. Apenas em 1983 surge a primeira tradução em português do Brasil do “alemão de Kafka’, com a publicação do conto A CONSTRUÇÃO NA REVISTA – Novos estudos do Cebrap por Modesto Carone, professor das universidades de Viena, USP e Unicamp. A seguir Carone traduz UM ARTISTA DA FOME (Brasiliense, 1984) e as principais obras de Kafka (A METAMORFOSE, O PROPCESSO, A MURALHA DA CHINA, AMERICA, O CASTELO). Simultaneamente, persistem (com perdão da palavra) as “transtraduções”, muitas vezes oriundas de fontes sem rigor editorial. Só de A METAMORFOSE, a partir de 1956, são publicadas por diferentes chancelas mais de 20 edições, além de múltiplas adaptações da ruidosa história do “homem-inseto”.
Carone, portanto, é responsável pela primeira viagem direta de Kafka ao nosso idioma. Em Portugal só em 1999 sai O PROCESSO, em tradução do alemão por Álvaro Gonçalves (Assírio Alvim). Caberá Marcelo Backes convidar F.K. para uma segunda visita sem escalas no Brasil quando lança pela LP&M O PROCESSO (2001) e A METAMORFOSE (2006). Em BLUMFELD, o premiado escritor e tradutor gaúcho busca, como nos trabalhos anteriores, a fidelidade às escolhas de Kafka sem contornar asperezas e ambiguidades estilísticas. Esforço elogiável, já que as transtraduções acabam sendo, quase sempre, reproduções empobrecidas do texto kafkiano. A preocupação também está presente no trabalho de Modesto Carone, que procura a fidelidade possível não só à letra, mas a sintaxe peculiar de Kafka. Em suas próprias palavras: “Nesse sentido, a frase em português tenta tanto acompanhar de perto a precisão vocabular como a curva estilística do autor marcada pela batida protocolar e repetitiva que marca seu labirinto. Evidentemente, isso implica pôr de lado qualquer veleidade de amaciar o texto com o propósito comercial de torna-lo digestivo e edulcorado”. Celso Donizete Cruz, outro tradutor direto do alemão de A METAMORFOSE também se recusa a amenizar o estilo tortuoso, cheio de repetições lexicais e frases longas do texto kafkiano.
Os três responsáveis por visitas de Kafka ao português do Brasil têm ainda o cuidado de enriquecer seus trabalhos com valiosas notas críticas. Em BLUMFELD, Marcelo Backes apresenta um acurado índice das origens dos textos por ele selecionados, além de uma cronologia biográfica do autor. O destaque, porém, é o alentado e informativo posfácio, em que o tradutor defende a original ideia segundo a qual Kafka criou um único personagem. Para Backes, o herói kafkiano é sempre o mesmo. Ele próprio, Franz Kafka.
A verdade é que o debate sobre a obra kafkiana abrange um universo tão vasto e intrincado quanto o próprio legado do autor. Sua fortuna crítica (uma das mais caudalosas da literatura universal) abarca interpretações religiosas, psicologizantes, filosóficas, políticas, proféticas, sem falar nas polêmicas sobre as traduções, isto é, sobre as dificuldades de levar o texto para outros idiomas. Sem competência para entrar nesse labirinto, registro apenas a visita tardia de Kafka à língua portuguesa.
Como vimos, em 1956, quando surge a primeira transtradução entre nós, Kafka já é visitante assíduo na Argentina. Em 1939, Editorial Losada, de Buenois Aires, publica EL PROCESSO, traduzido do alemão por Vicente Mendivil. LA METAMORFOSIS, em volume que inclui mais oito contos lapidares, entre eles EDIFICACIÓN DE LA MURALLA CHINA, UM ARTISTA DEL TRAPECIO, UM ARTISTA DEL HAMBRE e UMA CONFUSIÓN COTIDIANA (com tradução direta e prólogo de ninguém menos do que Jorge Luís Borges) sai pela Losada em 1943. No mesmo ano, a Emecé Editores, publica AMERICA (tradução de D.J.Vogelmann). A mesma editora lança em sequência EL CASTILLO, LA CONDENA, LA MURALLA CHINA, dois volumes dos DIÁRIOS (1910/1913 e 1913/1914). LA CARTA AL PADRE é de 1965 por Jocobo Muchnik Editor, um ano antes de A METAMORFOSE chegar ao Brasil com passagem pela Inglaterra.
Não é preciso dizer mais para considerar Kafka um visitante tardio em nosso cenário. Assim, é de supor que sua obra tenha exercido forte influência nos escritores de língua espanhola bem antes de repercutir entre nós. Reza a lenda que, para García Márquez, o realismo fantástico não existiria sem Kafka. Brumas kafkianas são perceptíveis nas obras de Cortázar, Sábato, Casares e sobretudo na de seu tradutor Jorge Luís Borges. No prólogo de LA METAMORFOSIS, o autor de FICCIONES (1944) afirma: “A mais indiscutível virtude de Kafka é a invenção de situações intoleráveis”. Estaria o argentino falando do autor de O PROCESSO ou de si mesmo?
Outra sacada interpretativa de Borges no texto citado acima diz respeito aos romances considerados inconclusos (O PROCESSO, O CASTELO e AMÉRICA). “Tenho para mim que este reparo indica um desconhecimento essencial da arte de Kafka. O pathos destes romances nasce precisamente do número infinito de obstáculos que detêm e tornam a deter seus heróis idênticos. Franz Kafka não os terminou porque o primordial era que fossem intermináveis”.
Sem qualquer pretensão crítica, o objetivo desta nota é registrar o aparecimento tardio e por vias transversas do autor tcheco em língua portuguesa. Cabe aos especialistas investigar se o fato repercutiu de algum modo sobre a ficção brasileira contemporânea, lembrando apenas que em outras latitudes a obra kafkiana teve marcante influência e se tornou referência obrigatória a partir dos anos 30 do século passado.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Sinval Medina/Escritor em 10/08/2019