ROCINANTE – O PONTO DE VISTA DO CAVALO
Em algum lugar do Brasil de cujo nome não posso me lembrar, sem que a ameaça de lágrimas umedeça meus olhos, vivia Labíolo, um desses políticos desesperados, não sei se por poder ou por dinheiro, o que, como se sabe, dá no mesmo, pois quem tem poder não precisa de dinheiro, e quem tem dinheiro pode ter o poder que quiser, respeitados apenas os limites do que a quantidade de um ou de outro pode alcançar.
Ele queria a sua Dulcinéia, isto é, o cargo de diretor do clube hípico, mas era montado em cavalos magros e fracos, todos de nome Rocinante, que ele esperava alcança-la.
Sua visão era limitada pela posição dos olhos que a mãe natureza lhe deu, ao contrário dos meus, postos um de cada lado da cara para ver ao menos os dois lados que cada coisa pode ter.
Labíolo colocava o buçal em cada um daqueles matungos, pois de freios não precisava. Todos eram tangidos para onde ele quisesse, não sendo necessário mais do que um cabresto para conduzi-los, rumo a alguma prebenda, invariavelmente obtida por promessa de contratos ilícitos entre instituições públicas e empresas privadas. Ou então um emprego público, fraudado até em concursos, pois a esse tempo já estava tudo dominado.
Ao contrário do engenhoso fidalgo, Labíolo não tinha amor por ninguém, fossem filhos, amigos ou aliados. Nem pela própria mãe, ainda que sempre invocada por estratégia, pois mãe até bandido respeita.
Estava disposto a traí-los a qualquer momento e por qualquer coisinha que julgasse de seus pequenos interesses, pois tinha apenas interesses.
Mesmo quando colocava bens nos nomes de filhos e de outros parentes, era pensando em si mesmo que o fazia, com o fim de preservar o patrimônio em algum desses surtos de moral que de vez em quando irrompiam, mas que cessavam a tempo de os negócios serem retomados tal e qual eram antes.
Quem conta esta história? Descendo de um daqueles matungos que levaram Labíolo ao poder e ao dinheiro, pois também o carreguei no lombo rumo às urnas na primeira vez.
A primeira coisa que ele fez ao chegar ao poder que conquistou ou ao pensar que tinha chegado foi trair os aliados como eu. Muito covarde, não enfrentou nenhum cara a cara, mas sim com mãos e porretes alheios.
Ajudou-o na empreitada o passado tupiniquim do povo brasileiro, que tem incontida reverência por caciques e grande devoção por tiranos, venham de onde vierem. Por eles são capazes até de acordar o jagunço que cochila dentro de cada um.
Essa subserviência multissecular vem disfarçada em aleivoso comportamento: o cacique vence porque os comandados acham que obedecendo poderão ganhar alguma coisa.
Ainda que muito pouco, como, por exemplo dos mais rasteiros, uma graninha para agitar uma bandeirola ou às vezes apenas comparecer e bater palmas alegremente às falas dos comandantes, por mais imbecis que sejam uns e outras, pois a vida concedeu-lhes o conforto de pensar pouco.
Como tudo começou a mudar, só mesmo um cavalo para contar. Venceu a corrida para a direção do clube hípico um azarão que já a tinha perdido muitas vezes. Estava escrito que ia perder de novo. Era um indivíduo tosco que desconcertava muito mais por não se fazer de rogado e reiterar com aborrecida frequência que tinha descoberto ser melhor viver assim do que alfabetizar-se. Tendo sido rejeitado muitas vezes, por que, então, venceu aquela e ainda foi reeleito?
Esta pergunta é fácil de responder. O povo brasileiro tem uma queda, melhor dizendo, um precipício por medíocres. Se os rejeita, é por esperteza ocasional, mas se não os endossa é por vergonha de revelar que é igual àqueles que também almeja ser, se ainda não o é. Assim, no íntimo acolhe o medíocre em sua inteireza, o que facilita os trabalhos do imbecil que se quer impor.
Deu-se o seguinte. Para aquela eleição foi garantido também o direito de votar de quem não sabia escolher nada, quanto mais um governante. E aqueles que não sabiam nada de nada compareceram em massa aos locais de votação e, procedendo como os cavalos, ergueram as patas e cravaram o número do candidato vencedor.
Ao contrário dos irmãos e semelhantes de Rocinante, mas sem a delicadeza e a sabedoria do famoso cavalo, levaram o engenhoso político, não a combater os moinhos de vento, como prometera, mas a eles se aliar. Aliou-se e venceu.
Uma vez no poder, passou a agir para contentar aqueles que o tinham trazido até ali, dando-lhes migalhas, e enchendo o pandulho daqueles que podiam tirá-lo dali, que de migalhas não queriam nem saber.
Com recursos públicos abundantes e sem grandes despesas, pois herdara uma administração que deixara um clube sem obrigações, teve um sucesso assombroso.
Mas não posso contar. Quando começou a ruir o esquema, eu já estava galopando longe, rumo a outro destino, cujo nome não quero declinar, mas que fica na Espanha, de onde eu nunca deveria ter saído, pois desembarquei num país que ainda não saiu do século de Cervantes.
Fonte: Correio do Povo/Deonísio da Silva(Escritor e professor) 12/09/2015