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José Saramago: por Raquel Trentin Oliveira
José Saramago: por Raquel Trentin Oliveira

GRANDE CONTADOR DE HISTÓRIAS

 

SARAMAGO – O LEITOR ENCONTRA EM SEUS ROMANCES AQUELA FANTASIA FICCIONAL E ALEGÓRICA, CAPAZ DE FAZÊ-LO VIAJAR POR MUNDOS ESTRANHOS E POSSIBILIDADES INSÓLITAS.

O NARRADOR DE SARAMAGO NÃO É AQUELE CONTADOR DE HISTÓRIAS QUE IMPÕE A SUA VERSÃO DEFINITIVA DOS FATOS, COMO SE RECITASSE UMA LIÇÃO.

 

A atribuição a José Saramago do Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, só veio consolidar o reconhecimento da crítica e o sucesso de público que a obra do autor conquistou em Portugal e no estrangeiro.  Jornalista e cronista (DESTE MUNDO E DO OUTRO, 1971; A BAGAGEM DO VIAJANTE, 1973), contista (OBJETO QUASE, 1978) e poeta (OS POEMAS POSSÍVEIS, 1966; PROVAVELMENTE ALEGRIA, 1970), foi como romancista que o autor se consagrou, sobretudo com a publicação de LEVANTADO DO CHÃO (1980), depois de um primeiro e esquecido romance TERRA DO PECADO (1947) e seu MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA (1977), espécie de ensaio sobre representação artística e seu compromisso com homem e sociedade.

 

Acima de tudo, Saramago é um excepcional contador de histórias.  O leitor  encontra em seus romances aquela fantasia ficcional e alegórica, capaz de fazê-lo viajar por mundos estranhos e possibilidades insólitas: era uma vez uma revisor de textos que ousou subverter a história de Portugal impondo um NÃO ao apoio dos cruzados ao rei português na luta contra os mouros (HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, 1989); a península ibérica que se desprendeu da Europa e deslocou pelo Atlântico afora (A JANGADA DE PEDRA, 1986); uma inexplicável e súbita cegueira, que se alastrou por Lisboa, poupando uma única mulher (ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, 1995); a Morte que se negou a dar cabo dos homens (AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, 2006); e assim por diante.  Por outro lado, suas intrigas abrangem o mais comezinho, a rotina sofrida e as conquistas diárias da dita arraia-miúda.

  

Um dos romances mais exemplares dessa heroicização do homem simples é LEVANTADO DO CHÃO (1980), dedicado a narrar a luta incansável de camponeses portugueses por direitos básicos, como a redução da carga de trabalho para oito horas diárias.  Embora tenha em mira a realidade circundante e contemporânea, Saramago explora, com frequência, enredos e personagens tradicionais: sejam eles historiográficos (como em MEMORIAL DO CONVENTO, 1982, ou em A HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, 1989), bíblicos (como em O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, 1991, e CAIM, 2009) ou literários (como em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, 1984).  Tais enredos são reconfigurados ficcionalmente, com o propósito de denunciar atos de violência e injustiça (como os cometidos pela Inquisição católica e a ditadura salazarista) e de valorizar a vida de marginalizados e oprimidos, cujos pontos de vista subvertem os sentidos do passado.  Em algumas de suas últimas obras (ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, 1995; TODOS OS NOMES, 1997; A CAVERNA, 2000: O HOMEM DUPLICADO, 2002; ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ, 2004; AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, 2006), Saramago cultiva intrigas menos localizadas, abandonando figuras e episódios do imaginário cultural português para representar a condição humana em uma sociedade globalizada e consumista, atento, talvez, à dimensão internacional que sua obra tomou.  Em A CAVERNA, por exemplo, artesãos perdem a base do seu sustento, incapazes de concorrer com o mercado de com sumo.  Em O HOMEM DUPLICADO, o protagonista descobre seu sósia num ator de cinema e tem de conviver com o dilema da “dupla identidade”.

  

O narrador de Saramago não é aquele contador de histórias que impõe a sua versão definitiva dos fatos, como se recitasse uma lição.  Um dos maiores atrativos dessa narração está na constante autoreflexividade, na explicitação do caráter relativo e parcial do discurso.  Assim, bem longe de uma posição passiva e cômoda, o leitor é convidado constantemente a questionar a própria forma e o conteúdo do que está lendo.  Nem por isso, o tom crítico do narrador é menos incisivo.  Irônica e zombeteira, sua voz é capaz de implodir aquelas crenças mais estáveis, atingindo até dogmas e verdades há séculos intocáveis.  E talvez esteja na releitura de mitos religiosos sua atitude mais subversiva e controversa.  Marca também essa enunciação desassossegada é a costura de diferentes registros discursivos, dialetos, clichês e provérbios, configurando uma escrita democrática, sensível a distintas – e não raro conflitantes – vozes sociais.

 

Do pouco que aqui foi dito sobre obra tão diversificada, é possível perceber a unidade de um projeto que se orienta por um intuito humanista.  Com vestígios mais ou menos evidentes da inclinação marxista do autor, os romances de José Saramago, em geral, representam a secular luta do homem contra a opressão e a ignorância, sustentadas por instituições autoritárias e legitimadas por discursos hegemônicos e homogeneizantes.  Sem dúvida, o que fica da leitura desse clássico da literatura portuguesa contemporânea é a busca de um sentido mais genuíno do humano, sugerido provisoriamente na representação das cenas mais corriqueiras, por homens simples e por gestos desarmados de preconceitos e interesses.  Ou, ainda, a busca de uma  noção mais legítima de amor: não o amor romântico, idealizado e artificioso, mas aquele livre de amarras e convenções, feito de desejos naturais e afinidades bem comuns, como o de Blimunda Sete-Luas e de Baltazar Sete-Sóis, tão vulgar e tão sublime ao mesmo tempo.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Raquel Trentin Oliveira (Professora do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria) em 10 de outubro de 2015.