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Sigmund Freud por Elisabeth Roudinesco
Sigmund Freud por Elisabeth Roudinesco

FREUD EM DOIS TEMPOS

 

Convidada de setembro no Fronteiras do Pensamento, a francesa Elisabeth Roudinesco escreveu uma biografia para situar as contradições do fundador da Psicanálise.

 

O grande trabalho de Freud, nos diz Elisabeth Roudinesco, foi o de nos transformar em heróis de nossas vidas.  Cuidamos de nossa história pessoal, construíamos narrativas e nos interrogamos.  Um século atrás, um doente era tratado com poções, colocavam-no num sanatório e o denominavam louco.  O genial em Freud foi transformar o neurótico moderno em um personagem trágico; Hamlet ou Édipo.  É preciso restaurar a ele esse gesto contra o reducionismo contemporâneo que faz do ser humano uma simples máquina química sem alma.  A pulsão de morte é produzida pela história, pelos determinismos políticos que são o essencial da segunda parte freudiana.  Freud construiu um movimento de Luzes.  Não uma revolução política, mas uma revolução no sentido íntimo, simbólica, que transformou nosso olhar sobre nós mesmos.

 

Com estas questões instigantes e outras tantas, a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco chegou a Porto Alegre, em setembro, trazendo na bagagem sua obra mais recente: SIGMUND FREUD NA SUA ÉPOCA E EM NOSSO TEMPO (tradução de André Telles. Zahar, 530 páginas).  Assim como em A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NA FRANÇA (Zahar, 1988) e JACQUES LACAN, ESBOÇO DE UMA VIDA, HISTÓRIA DE UM SISTEMA DE PENSAMENTO (Companhia das Letras, 1994), parece que estamos diante de um palpitante romance ambientado na Viena da belle époque.  No centro dessa paisagem, Freud está situado como um homem que enfrentava mil contradições e que conseguiu criar uma doutrina “a meio caminho entre o saber racional e o pensamento selvagem, entre a medicina da alma e a técnica da confissão”.

 

O livro propõe repensar o personagem.  Parte da vontade de invalidar as condenações mais injustas que costumam representá-lo como um enganador.  Mas também se contrapõe às biografias em tom hagiográfico.  Roudinesco transforma Freud em um personagem muito vienense, inscrito em uma época plenamente europeia na qual o continente se interrogava sobre seus mitos institucionais para renovar sua identidade.  Um personagem da luz e da sombra.  Ao contrário dos pensadores reacionários, para os quais o homem é horrível e é preciso reprimir os maus instintos, Freud considera que é preciso sublimá-los e que a lei e a civilização têm papel importante na maneira de controlar as pulsões.

 

Rondinesco o define como um conservador rebelde, um democrata a favor das monarquias constitucionais, mas contrário à pena de morte, a favor da emancipação das mulheres e dos homossexuais.  Um estranho conservador!  Freud traz para a história do saber a riqueza das contradições: a ideia de que somos determinados pelo inconsciente e, ao mesmo tempo, livres.  Era um pensador habitado pelo irracional, pelo demoníaco, pelas histórias de bruxarias.  Nessa biografia, Roudinesco demonstra o contraste permanente de Freud.  Ele queria fazer uma ciência, mas fez uma medicina da alma racional.  Ele não queria ligar seu trabalho à psicologia nem à filosofia, queria construir um movimento. Pensava que, quanto mais progresso, mais infelicidade e, portanto, mais é preciso ser progressista!  Essa é a dialética permanente em Freud.

 

Discípula de Deleuze, Foucault e Todorov, Roudinesco encontrou em Michel de Certeau seu grande incentivador para escrever uma história do freudismo a partir de um domínio que não era o da mística.  Foi na década de 1978, frequentando as reuniões do grupo Confrontação, que Roudinesco tomou a decisão de escrever a história da psicanálise na França.  Sob a influência do filósofo Jacques Derrida e sua desconstrução, ela se aproximou dos atores que tiveram um papel importante na história do freudismo francês entre 1950 e 1963: a famosa terceira geração francesa.

 

Eles não somente eram a “memória” do movimento psicanalítico, pois haviam conhecido os pioneiros, mas também testemunhas de uma época crucial do movimento lacaniano, marcado pelo encontro entre um mestre no apogeu de seu saber e seus discípulos.  Roudinesco mergulhou na aventura freudiana na França criando a expressão “situação francesa” da psicanálise para diferenciar a doutrina (teoria e prática) como sistema de pensamento, sem pátria nem fronteiras, da posição dessa doutrina em sua história – a qual supõe sempre à existência de condições nacionais ou linguísticas.  A historiografia do freudismo, desde 1986 com A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NA FRANÇA, vem recebendo imensas contribuições dessa notável historiadora.  Ser a primeira biógrafa francesa de Freud a consagra como grande pensadora de nosso tempo.  Por este trabalho, ela recebeu  as premiações literárias Décembre e Prix des Prix Littéraires.

 

Fonte:  ZH Caderno PrOA/Ana Maria Gageiro (Psicanalista, membro da APPOA e professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da UFRGS) em 11/09/2016