A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA
A memória não é um dever: a memória é um dom que se recebe e que se dá.
Partindo da afirmação de Norberto Bobbio de que “nós somos o que lembramos”, podemos concluir que é a memória que nos constitui como sujeitos e que, portanto, a literatura, sendo a expressão de nossa subjetividade, se faz com a matéria da memória e do esquecimento, duas faces da mesma moeda. Os interstícios entre memória e esquecimento são preenchidos pela imaginação criadora do poeta ou do escritor.
Gostaria de comentar o surgimento a partir dos anos 1990, tendo continuidade no decurso do século XXI, de um tipo de romance. Chamado de “filiação” que se caracteriza pela recuperação da memória geracional. Esses romances, que são na verdade, um desdobramento da autoficção, utilizam-se da estratégia de contar a história do pai, da mãe, ou dos avós, explorando a memória familiar como pretexto dos autores para falar de si mesmos.
Esse recurso ficcional que mescla, portanto, interioridade e anterioridade, pois focaliza a narrativa nas gerações precedentes, se torna recorrente em várias literaturas europeias (francesa, alemã e portuguesa, entre outras), assim como nas literaturas de língua francesa do Quebec e do Caribe e também no Brasil. O eu narrador acessa seu estoque memorial para recuperar passagens da vida dos ancestrais numa perspectiva de ajuste de contas com o passado, hesitando entre reivindicar ou repudiar a herança paterna ou materna. Nessas narrativas, rememoração e transmissão terão papel fundamental já que “escrevemos para sobreviver, para não morrer por inteiro ou para deixar algo durável, para deixar um rastro ou uma marca de nossa passagem”, como menciona Jeanne Marie Gagnebin, em seu livro LIMIAR, aura, rememoração, de 2014.
Falamos aqui de memória não como “arquivo” onde se amontoam registros e anotações, mas no sentido expresso por Walter Benjamin como a possibilidade de ressignificar, no presente, vestígios do passado. Se a ressignificação no presente de elementos memoriais do passado é fundamental, torna-se imperioso o ato da transmissão através do registro literário. Falamos aqui de “transmissão geradora de sentido” sobre a qual escreveu Paul Ricoeur (TEMPS ET RÉCIT, 1985), na tentativa de lembrar que a literatura é também o lugar da rememoração de elementos da tradição que passam a ser ressignificados nas obras de ficção.
Poderíamos citar muitas autoras da atualidade que praticam esse chamado romance de filiação alicerçado na memória geracional, como Tatiana Salem Levi, Adriana Lisboa, Eliane Brum, Cíntia Moscovich, Letícia Wierzchowski, Conceição Evaristo – autora afro-brasileira que conquistou em 2015 o prestigioso Prêmio Jabuti de Literatura – e Carola Saavedra que, com seu recente livro publicado pela Companhia das letras, COM ARMAS SONOLENTAS (2018), traz à tona memórias de três gerações de mulheres, inspiradas pelos versos de Sor Juana Inés de la Cruz, centrados no sonho de liberdade.
Essa busca da memória ancestral, ultrapassa os limites das gerações: na obra de Carola Saavedra, “Sor Juana Inés de la Cruz”, é essa mãe ancestral que se manifesta através de seus poemas disseminados através do texto; na obra de Conceição Evaristo, OLHOS D’ÁGUA de 2015, a personagem vai em busca da mãe, para saber qual era a cor de seus olhos, mas também da mãe ancestral, da Yabá, “dona de tantas sabedorias”.
Tal busca será transmitida através da ficção, para que se estabeleça um continuum memorial que garanta a passagem, às próximas gerações, do legado das gerações anteriores do qual as narradoras sentem-se herdeiras e porta-vozes. Contudo, os romances de filiação podem também caracterizar-se por um mal-estar na transmissão, ou seja, o/a “herdeiro/a” rebela-se, passando a repudiar o legado paterno ou materno. Segundo o teórico francês Laurent Demanze, esse seria o “herdeiro problemático ou inquieto” que corresponde ao escritor contemporâneo !que constrói suas narrativas de filiação para exumar os vestígios de uma herança em farelos e alinhavar os farrapos de sua memória destruída” (ENCRES ORPHELINES, 2008, p. 9).
O título – A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA – dessa brevíssima reflexão sobre as relações entre memória e literatura, foi tomado de empréstimo ao pintor Salvador Dalí que o atribuiu a uma obra de 1931 na qual, sobre um fundo de praia com barcos, há quatro relógios moles ou derretidos. Que relação têm os relógios com a memória? Se os relógios “normais” marcam o tempo cronológico, os relógios derretidos não estariam ali para marcar o tempo como durée (duração), ou seja, o tempo captado pela memória involuntária que é aquela se faz presente no romance moderno desde Marcel Proust?
Enquanto nas sagas tradicionais, que imperaram durante o século XIX até a metade do século XX, o narrador em terceira pessoa obedecia à cronologia dos acontecimentos, no romance de filiação é um narrador em primeira pessoa que, movido pela memória involuntária, evoca suas reminiscências, descritas por Walter Benjamin como “imagens do passado que relampejam no presente”.
Ao problematizar a questão da origem, o romance de filiação, longe de se preocupar com a origem única, procura, ao contrário, desmistificar a busca obsessiva pela gênese ou por uma raiz identitária única dos personagens, tentando vislumbrar a questão das filiações e das afiliações como esquemas rizomáticos, abrindo-se na busca da relação com o outro na diversidade.
Fonte: Correio Povo/Caderno de Sábado/Zilá Bernd (Universidade LaSalle/Bolsista produtividade em Pesquisa CNPQ) em 10/11/2018