A FICÇÃO DA AUTOFICÇÃO
Talvez por um refluxo cristão tardio, a autoficção continue sendo vista como expressão do que temos de pior.
“A única coisa que o interessava profundamente era sua própria pessoa e sua própria vida; foi inteligentemente, deliberadamente, integralmente egoísta.” Seria essa uma boa definição do gênero literário que nos últimos anos se convencionou chamar de “autoficção” - a ficção em que o escritor faz de si mesmo personagem, elidindo a fronteira entre verdade e mentira que, por intuição, costumamos marcar nos textos que lemos? Talvez.
Na verdade, trata-se de um trecho de um estudo sobre Michel de Montaigne (1533-1592) do teórico alemão Erich Auerbach publicado na década de 1940 (“Introdução aos Estudos Literários”, Cosac Naify).
A revolução de Montaigne em seus célebres “Ensaios”, um best-seller do século 16, estava em se colocar, sem nenhum pudor, como régua de referência para julgar os fatos do mundo. E retratava-se no chão comezinho da existência, em seu instante biográfico presente, das pedras do rim às dificuldades conjugais, sem tomar de empréstimo nenhum modelo sublime de algum quadro filosófico ou religioso estabelecido a priori.
“Meus atos”, diz Montaigne, condicionam-se ao que sou; não posso fazer mais ou melhor, e o arrependimento não se aplica às coisas que estão acima de nossas forças. Em suma: “Não é uma mancha que há em mim; é minha cor natural”. Depois de séculos de constrição medieval religiosa, em que a condição humana só podia ver a si mesma como algo desprezível que se reduz a pó, entende-se a força renovadora do sopro de Montaigne. Ele reinaugura uma valorização da independência do indivíduo que não teria mais retorno na consciência do Ocidente.
Por essa característica marcante, poderia ser nomeado a santo padroeiro da autoficção, esse gênero que, talvez por um refluxo cristão tardio, seja ainda visto como expressão do que temos de pior, como os blogues da internet. A ideia de alguém que se dedique inteiramente a si mesmo – embora seja isso, metáforas à parte, o que todo mundo faça o tempo todo – soa desagradável ou mesmo inaceitável. O mundo inteiro vê a si mesmo moralmente solidário, comunitário ou socialista; e, do ponto de vita científico, como objetivo e neutro. A chamada autoficção parece quebrar as duas regras ao mesmo tempo.
Bem, para não me acusarem de eurocêntrico, ou, mais grave, sexista, ou quem sabe ainda pior, de elitista, lembro uma mulher do outro lado do mundo, no Japão, cerca de 500 anos antes de Montaigne, e de um estrato social muito abaixo deste senhor de terras e títulos.
Trata-se de uma simples dama da corte do período Heian, de nome Sei Shônagon (c.966-1020), que escreveu uma obra-prima chamada O LIVRO DO TRAVESSEIRO (editora 34). Shônagon pode ser considerada a precursora mundial do gênero de Montaigne.
(Parêntese: há as CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO [354-430 d.C.], mas nele – nessa classificação arbitrária que faço aqui – falta o temperolaico do verdadeiro individualismo, que não se entrega a um fechamento externo).
Sei Shônagon escreve coisas assim: “O homem, sim, é um ser deveras singular e de coração bem suspeito. É estranho como ele pode abandonar uma mulher muito bonita para viver com uma feia”.
Veja-se este trecho, que curiosamente reverbera ainda hoje: “Os Tenentes da Direita e da Esquerda da Guarda do Portal foram apelidados de Oficiais de Polícia, de tão terrivelmente temidos e reverenciados que eram”.
Na relação de “coisas que provocam inveja”, ela lembra “homens e mulheres que leem com fluência e facilidade” e especula sobre se será como eles algum dia. Na lista de “coisas que constrangem”, ela diz: “Ser obrigada a ouvir, sem poder impedir, assuntos indiscretos comentados num aposento dos fundos”. Ou, ainda, o que vem bem a calhar aqui: “Ignorantes com ares de conhecedores que citam autores célebres”.
É claro que há um abismo intransponível nessa comparação: a ausência da herança cristã e da concomitante enciclopédia greco-romana que formataram o Ocidente. Shônagon ressoa hoje como uma estranha Eva num paraíso antes do fruto do bem e do mal, dando nome às coisas pela primeira vez e pelo exclusivo arbítrio de seu próprio olhar. O ponto em comum é o gesto fundamental da escrita, que é o ato de duplicar o mundo para torná-lo habitável.
Fonte: Folha de S. Paulo/Cristovão Tezza em 27/08/2017