EXPATRIADOS E REPUTAÇÕES
No romance breve, pouco mais de cem páginas, o protagonista, Javier Mallarino, é um importante cartunista colombiano, que expõe as fraquezas das figuras públicas em suas charges diárias.
Em SOPRO NA ARAGEM (Editora Córrego), na crônica A LÍNGUA DOS OUTROS, falo de escritores expatriados. Cito James Joyce, o rei de todos os expatriados, que abraçou suas origens e criou Leopold Bloom. E também menciono Samuel Beckett que, ao contrário, fez tudo o que podia para se livrar do sabor local da irlanda, morando em Paris e escrevendo em francês. Já o russo Vladimir Nabokov mudou-se para os EUA e escreveu Lolita em inglês. Outros escritores cuja língua materna não era o inglês e o adotaram são Joseph Conrad e W.H. Hudson.
Conrad e Hudson figuram no romance de Ricardo Piglia, O CAMINHO DE IDA (tradução de Sérgio Molina, Companhia das Letras). Piglia se inspira em O AGENTE SECRETO de Conrad ao criar o criminoso de O CAMINHO DE IDA e usa as marcas que Ida tinha feito no livro para encontrar o criminoso.
O narrador, Emilio Renzi (alter ego do autor), chega ao campus de uma universidade da costa leste dos EUA para lecionar sobre W.H. Hudson, escritor nascido na Argentina, que se mudou para a Inglaterra e escreveu em inglês. W.H. Hudson talvez apareça no romance de Piglia por ser conterrâneo de Renzi. Ou, talvez, porque remeta o leitor a Conrad, objeto das aulas da professora Ida Brown, colega do narrador.
Renzi se divorciou e gosta da ideia de que a distância o ajudará a recuperar seu rumo na vida. Seu plano desmorona quando começa um romance clandestino e inesquecível com Ida. Ela morre em acidente misterioso e o detalhe de sua mão queimada parece ligar a professora a uma série de ataques contra figuras do mundo acadêmico. O assassino mata para se fazer ouvir – como fazem os anarquistas radicais, que explodem uma bomba em Greenwich para chamar a atenção das pessoas, em O AGENTE SECRETO.
Ao contrário dos retratos magistrais dos anarquistas de Conrad, Piglia faz apenas um esboço do seu radical. Mas a referência a Conrad me ajudou a entender o personagem de Piglia – muito à vontade no campus americano que lhe era familiar. O livro exagera na quantidade de referências literárias e pequenas resenhas, mesmo considerando a profissão do protagonista.
Piglia não é o primeiro latino-americano a invocar o nome sagrado de Conrad. Juan Gabriel Vásquez, renomado autor colombiano, também se inspirou em Conrad para escrever sua HISTÓRIA SECRETA DE COSTAGUANA (tradução de Heloisa Jahn, L&PM Editores). Autor expatriado, vivendo longe de onde nasceu, Vásquez continuou a escrever em espanhol e mergulhou seus textos na atmosfera do seu país de origem.
A HISTÓRIA SECRETA DE COSTAGUANA se proclama versão alternativa a NOSTROMO, de Joseph Conrad, romance que se passa em um país ficcional latino-americano chamado Costaguana (que os críticos acreditam ser a Colômbia, embora tenha elementos da Venezuela do ditador Cipriano Castro. A HISTÓRIA SECRETA DE COSTAGUANA de Vásquez se passa na Colômbia e no Panamá e seu narrador, José Altamirano, afirma ser o duplo de Conrad a quem conhecera em Londres na casa de Santiago Pérez Triana, um colombiano exilado que, de fato, forneceu a Conrad informações para a redação de NOSTROMO.
De acordo com Altamirano, entretanto, foi ele, Altamirano, e não Pérez Triana, quem deu a Conrad o material, que incluía o relato da guerra civil que levou à separação do Panamá em 1903. Altamirano não se contenta em acusar Conrad de plágio. Insiste que ele e Conrad são, essencialmente, a mesma pessoa, embora o romance deixe claro que as vidas de Conrad e Altamirano são diferentes. Essa costura entre histórias reais e ficcionais são moda na literatura contemporânea, talvez para nos despertar para os limites do que chamamos realidade.
Mas, em consequência de tanta complicação, quase me perco, Pois, na verdade coração, hoje vim aqui para recomendar não a HISTÓRIA SECRETA DE COSTAGUANA, mas outro livro de Vásquez, que nada tem a ver com Conrad. A não ser que você considere que textos inteligentes, persuasivos e carregados de observações argutas bastam para definir a relação.
O livro é REPUTAÇÕES (tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, Editora Bertrand Brasil).
No romance breve, pouco mais de cem páginas, o protagonista, Javier Mallarino, é um importante cartunista colombiano, que expõe as fraquezas das figuras públicas em suas charges diárias. Mallarino que, com suas caricaturas, ajuda a definir o tom do debate político em Bogotá, se vê como a “consciência do país”, um humanista. Apesar das vítimas (ou por causa delas), criou uma enorme reputação de independência e integridade.
Assim como o passado tem o hábito de fazer visitas indesejadas que destroem a autocomplacência dos famosos, pois obrigam a rever noções exaltadas de si mesmo, a visita inesperada de Samanta Leal a Mallarino vai balançar a segurança do cartunista. Samanta tenta descobrir um fato de sua infância que seus pais esconderam. Na pré-adolescência, ela visitara a coleguinha, Beatriz, filha de Mallarino, em uma casa nas montanhas com vista para Bogotá. Algo estranho acontecera naquele dia. O que motivara o pai de Samanta a levá-la embora num ataque de fúria e, em seguida, a mudá-la de escola?
Durante a longa noite em que se dá o encontro entre Samanta e Mallarino (envelhecido e desejando a jovem), o cartunista reconstrói a cena do passado. Ele lembra a festa que deu para inaugurar sua moradia na montanha, após o divórcio da mãe de Beatriz. Para seu aborrecimento, naquela noite, Adolfo Cuéllar, um deputado que detestava, chegara a casa na montanha sem ser convidado. Mallarino tinha desenhado várias caricaturas dele, ridicularizando sua popa e hipocrisia. Cuéllar vinha pedir mais gentileza, pois queria poupar os filhos da vergonha que sentiam cada vez que uma charge aparecia no jornal.
Mallarino se lembra das súplicas de Cuéllar, de suas orelhas, nariz, testa e têmporas, lembra os próprios pensamentos de desdém e desprezo que as feições do congressista lhe inspiravam. Lembra-se da decisão de continuar desenhando aquela figura repugnante, pois aqueles ossos e cartilagens denunciavam a moral corrompida.
De repente, instalara-se o caos. As duas garotas, Samanta e Beatriz, tinham bebido todos os restos deixados nos copos pelos convidados e caíam de bêbadas. Mallarino deita as duas no quarto do segundo andar. O pai de Samanta vem buscá-la, sobe e desce correndo com a menina no colo, seguido pelo deputado apressado. A implicação é que Cuéllar fizera algo indecoroso.
No dia seguinte à festa, Mallarino publicou uma charge do congressista, cercado por meninas pubescentes com a legenda “Deixai vir a mim as menininhas”. Pouco depois o deputado se suicidou.
Antes da visita de Samanta, o público – na cerimônia que celebrava a emissão de um selo postal com o retrato de Mallarino – o aplaudira de pé. Ele estava no auge de sua glória, um dos homens mais admirados do país. Conversando com Samanta, pouco a pouco, ele talvez adivinhe que é hipócrita e moralista, como o deputado Cuéllar?
Existe algo pior do que os fantasmas do passado? A memória é confiável? Mallarino está certo do que aconteceu? Sua charge fazia justiça? Levara um homem ao suicídio? Mallarino questiona a própria vida. Apesar de sua fama de independente e puro, ele se fez prejudicando a reputação de outras pessoas. E, às vezes, não o teria feito injustamente, com base em um erro de julgamento? E se ele tivesse usado a inspiração frívola, derivada de um traço físico de sua vítima da hora, para atribuir responsabilidade moral?
Em poucas páginas, Vásquez coloca o leitor diante de seus temas preferidos: a ruptura de relacionamentos aparentemente sólidos, a solidão, o surgimento de paixões repentinas, a intrusão imprevista e indesejada do passado, a tendência pra a autodestruição e o personagem que, antes impulsionado por alguma obsessão pessoal, de repente, abandona sua causa.
Fonte: Revista Valor/Eliana Cardoso (economista e escritora) em 15/12/2017.