HÁ 60 ANOS, “ACOSSADO” MUDOU HISTÓRIA DO CINEMA
Clássico de Jean-Luc Godard consolidou a revolução da Nouvelle Vague
A aclamação de OS INCOMPREENDIDOS, de François Truffaut, no Festival de Cannes de 1959, ainda reverberava quando chegou aos cinemas franceses, em 16 de março de 1960, o outro cartão de visitas da Nouvelle Vague. Para muitos cinéfilos, ACOSSADO, longa de estreia de Jean Luc-Godard, tornou-se o filme-manifesto do movimento, tamanha voltagem de frescor e ousadia estética e narrativa.
Ignorado pelas plataformas de streaming, vez que outra lembrado na TV por assinatura, ACOSSADO repousa nas prateleiras das locadoras que sobrevivem. O roteiro foi escrito por Godard junto a Truffaut e Claude Chabrol, seus parceiros na revista Cahiers du Cinéma. O enredo é simples e está sintetizado em um fotograma icônico: Michel (Jean-Paul Belmondo) é um criminoso obcecado por Humphrey Bogart que rouba um carro, mata um policial e vai a Paris, onde conhece a americana Patricia (Jean Seberg), que veste uma camisa do New York Herald Tribune e vende jornais na Champs-Élysées. Mas a trama nem importa tanto. O que entrou para a história foi a forma como Godard a contou.
Aproveitando-se da premissa de filme de ação, o cineasta usou planos curtos e uma montagem acelerada, que quebrou um princípio do cinema clássico – a chamada “montagem invisível”. Em ACOSSADO, os cortes bruscos chamam a atenção do espectador, que vê a técnica por trás da ação e é instigado por esse estranhamento. A sobreposição de imagens soa ainda mais ostensiva porque Godard e a montadora Cécile Decugis não evitam o chamado jump-cut, ou seja, o salto que há quando tomadas subsequentes mostram a mesma cena, os mesmos objetos ou personagem sob uma angulação aproximada.
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A tradicional escola inglesa de documentários e o cinema-verdade que ganhava corpo à época ajudaram a desmistificar o “problema” do jump-cut. Mas ACOSSADO, que chegaria ao Brasil em março de 1961, proporcionava uma experiência mais radical, afinal, era uma ficção. Quem disse que tem de ser de um jeito ou de outro?. – era a pergunta que Godard parecia fazer.
A provocação deu certo porque não se trata de um blábláblá tecnicista: essa opção tem influência no processo de subjetivação do espectador, à medida que a noção de continuidade de tempo se dá justamente pela transição entre os planos. É uma questão de filosofia da imagem, que Godard aprofundou em uma das obras mais sólidas da história do cinema.
A modernização da linguagem se deu em um processo que data, pelo menos, dos anos 1940 e que tem em Orson Welles e Hitchcock, além dos filmes italianos do pós-guerra, os seus protagonistas. A introdução do flashback, da profundidade de campo e dos planos estendidos, entre outros recursos, abriu novas possibilidades de entender a relação espaço-tempo nos filmes. Faltava radicalizar a mudança. Faltava Godard.
As descontinuidades de ACOSSADO instigam uma nova percepção – e uma sensação de realidade diferente. O tempo, em Godard, é indeterminado. É múltiplo. E os gêneros também, contrariamente ao que indica o cinema clássico. Daí porque, como escreveu Glauber Rocha (no ensaio VOCÊ GOSTA DE GODARD? SE NÃO, ESTÁ POR FORA), “Godard é o máximo de coisas no mínimo de tempo”.
ACOSSADO é bem mais do que um longa de ação, ou de aventura, ou policial. É uma porta aberta a tudo o que a linguagem pode oferecer, dos superblockbusters contemporâneos, com seu ritmo frenético, à construção estética livre dos vídeos curtos das redes sociais. Você já percebeu, por exemplo, o quanto as postagens dos youtubers são marcadas pelo uso do jump-cuts?
Raros filmes, de fato, mudaram o cinema. ACOSSADO é um deles.
Fonte: Jornal Zero Hora/Segundo Caderno/Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) em 17/03/2020