O HOMEM QUE DESAFIOU PUTIN
Filme: Documentário NAVALNY, de Daniel Roher
Dos cinco indicados ao Oscar 2023 de melhor documentário, três já podem ser vistos no Brasil: ALL THAT BREATHES, na HBO Max, NAVALNY, na mesma plataforma, e VULCÕES: A TRAGÉDIA DE KATIA E MAURICE KRAFFT, no Disney+. Completam a lista ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED e A HOUSE MADE OF SPLINTERS.
A disputa está acirrada. Quatro desses filmes também competem no Bafta, da Academia Britânica, e DGA Awards, do Sindicato dos Diretores dos EUA, ambas entidades que têm votantes no Oscar.
ALL THAT BREATHES, NAVALNY e VULCÕES aparecem ainda na lista do PGA Awards, da Associação dos Produtores dos EUA. O suposto azarão é A HOUSE MADE OF SPLINTERS, do dinamarquês Simon Lareng Wilmont, premiado no Festival de Sundance do ano passado ao narrar histórias de crianças alojadas em um orfanato no leste da Ucrânia, durante a guerra com a Rússia.
ALL THAT BREATHES, do indiano Shaunak Sem, registra a luta de dois irmãos para, em meio à poluição e ao céu sombrio de Nova Délhi, proteger o pássaro conhecido como milhafre-preto (black kite).
Em VULCÕES, a estadunidense Sara Dosa reconstitui a trajetória do casal francês Katia e Maurice Krafft, cientistas e documentaristas que morreram por causa de uma erupção vulcânica no Monte Uzen, no Japão, em 1991.
Em ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED, a também estadunidense Laura Poitras acompanha a vida da artista Nan Goldin e a queda da família Sackler, a dinastia farmacêutica que foi a grande responsável pelo insondável número de mortos na epidemia de opioides — tema da premiada minissérie DOPESICK (2021).
NAVALNY retrata o maior opositor de Vladimir Putin, que vem se perpetuando no poder da Rússia desde a renúncia de Boris Ieltsin, em 1999 — atualmente, está no seu quarto mandato como presidente (também já foi primeiro-ministro) do maior país do mundo em extensão territorial e o nono mais populoso (são 143,7 milhões de habitantes). Dirigido pelo canadense Daniel Roher, o documentário começa com uma pergunta do realizador a seu personagem, o advogado Alexei Navalny, 46 anos, líder do partido Rússia pelo Futuro e criador da Fundação Anticorrupção:
— Se você for morto, se isso acabar acontecendo, que mensagem você gostaria de deixar para o povo russo?
O entrevistado sorri:
— Me poupe, Daniel! Parece que está fazendo um filme para caso eu morra. Ok, eu estou pronto para responder à sua pergunta, mas, por favor, faça um filme diferente. Vamos fazer um thriller deste filme, e, se eu morrer, faça um filme chato in memoriam.
NAZISTAS
A resposta ajuda a dimensionar a personalidade do bonitão Navalny, que se notabilizou por organizar protestos contra Putin — "É a profissão mais perigosa do mundo", define uma jornalista no áudio de uma reportagem.
O atual ocupante do Kremlin o odeia tanto, que se recusa a citar seu nome, como indicam trechos de entrevistas reproduzidos no filme. O opositor também virou sucesso em plataformas digitais e redes sociais, especialmente o Tik Tok, onde estão os jovens eleitores. Sua ambição é destronar Putin, nem que para isso tenha de marchar ao lado de nazistas.
— Em um mundo normal, em um sistema político normal, claro, eu jamais estaria no mesmo partido que eles. Mas estamos criando uma coalizão ampla para lutar contra o regime, só para chegar à situação em que todos possam participar da eleição — justifica Navalny.
"Você se sente desconfortável de ser visto em fotografias com eles?", questiona o diretor.
— Eu não me importo. Considero que seja meu superpoder político. Consigo falar com qualquer um — afirma Navalny. — De qualquer forma, eles são cidadãos da Rússia, e, se eu quiser vencer o Putin, se eu quiser ser um líder do meu país, não posso ignorar essa grande parte da população.
ENVENENAMENTO
Aquela pergunta inicial de Roher, por sua vez, remete ao assunto central do documentário: a tentativa de assassinato, por envenenamento com a substância chamada Novichok, de Navalny, durante um voo de Tomsk para Moscou, no dia 20 de agosto de 2020. Para profissionais da TV estatal, contudo, o político apenas sofreu efeitos colaterais porque, "como todos os opositores, toma remédios antidepressivos americanos". Ou então pagou o preço por "participar de orgias homossexuais intermináveis com álcool e cocaína", sugere outro comentarista.
Como o documentário mostra, Navalny já havia sido alvo de um ataque com um líquido verde tóxico, atirado em seu rosto ("A primeira coisa que pensei foi: Jesus, eu vou ser um monstro até o fim da minha vida"), além de ser detido pela polícia em algumas ocasiões ou condenado por convocar protestos "não autorizados".
— À medida que fui ficando mais famoso, tive certeza de que minha vida seria mais segura. Me matar seria problemático para eles — reflete.
Ele estava enganado, assume logo em seguida. O filme documenta o processo de recuperação de Navalny, na Alemanha, tendo ao lado sua esposa, a economista Yulia Navalnaya, e seus filhos, Dasha (hoje com 22 anos) e Zakhar (14), e a investigação conduzida pelo jornalista búlgaro Christo Grozev, que ajudou a equipe do russo a descobrir detalhes que indicam o envolvimento do Kremlin no plano homicida. Em certos momentos, o documentário assemelha-se mesmo a um thriller de espionagem, com direito a momentos de insuspeitado alívio cômico.
Mas logo fica claro que essa história não terá um final feliz. Motivado por um misto de idealismo, compromisso e vaidade, o regresso a Moscou, em janeiro de 2021, não será triunfal, ainda que uma multidão o estivesse esperando.
Atualmente, Alexei Navalny cumpre pena de nove anos em uma cela de três metros por dois metros em uma prisão localizada a 250 quilômetros de Moscou, sob acusação de "fraude e desacato". As últimas notícias dão conta das privações a que é submetido, incluindo o não acesso a atendimento médico. Recentemente, o ativista anunciou que, em 31 de dezembro, foi enviado pela décima vez a uma cela disciplinar, por um período de 15 dias, onde o seu isolamento e seus direitos ficam mais limitados. A punição se deu porque ele havia se banhado antes do horário regulamentar. Os partidários de Navalny denunciam uma tentativa do Kremlin de matá-lo pouco a pouco.
Fonte: Zero Hora/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 12/02/2023
NOTA:
NAVALNY foi vencedor do Oscar 2023, recebeu o Bafta e o prêmio da Associação dos Produtores.
— Eu assisti o documentário pois lembrava muito bem dos fatos através da imprensa, quando ocorreram. A minha dúvida era sobre a volta para a (União Soviética), Rússia. Não sei o que poderá, no futuro, resultar de toda a violência que ainda está recebendo na prisão, onde foi condenado a 20 anos, por uma série de crimes que só interessam ao Kremlin e ao Putin. É a Rússia, como sempre foi a União Soviética... ninguém tem direito a nada. Basta ver o que aconteceu durante mais de um ano, na guerra contra a Ucrânia... Vladimir Putin sequer liga para as sanções impostas ao seu país... Nell Morato