O LEGADO DE JEAN ROUCH
1917 – UM ANO PRÓDIGO
O cineasta e professor João Guilherme Barone fala do cineasta que foi unanimidade e deixou legado para diretores, humanistas e artistas.
Exaustivamente estudado e cultuado por acadêmicos e cineastas, Jean Rouch é uma das poucas unanimidades inteligentes deste mundo como o conhecemos, ao contrário do que pregava Nelson Rodrigues. Em honra ao seu centenário, nestes tempos de pós-verdades, fake news, crise humanitária global e falência ética crônica, talvez o melhor seja lembrar do legado de Jean Rouch como descobridor da verdade. Numa de suas frases célebres, ele afirma que “o cinema não se refere a verdade; ele instaura a sua própria verdade”. Essa parece ser a questão central que não é mais só do cinema, mas sim do mundo em que vivemos, cada vez mais fundamentado a partir de verdades “instauradas” pela via audiovisual.
Mas, essa procura começa da década de 1930, quando Rouch era um jovem engenheiro civil francês designado para obras públicas nas colônias da África. Foi construindo estradas e pontes em Niger que ele tomou contato com os rituais do povo Sanghai. Religião e magia com grande intensidade, a ponto de despertar naquele engenheiro o interesse pela antropologia e a etnografia. Alguns anos depois, Rouch e dois amigos desceram os 4.200 quilômetros do Rio Niger, numa canoa rústica africana, filmando toda a jornada. Nessa experiência, igualmente intensa e radical, começa um pensamento sobre essa possibilidade de uma verdade própria que está em cada filme e é resultado de um encontro entre quem conduz o processo e quem está participando (ou ainda de quem está atrás ou à frente da câmera). Nessa descoberta do cinema como uma outra ferramenta antropológica, feita por um engenheiro, nasce uma fora de pensar o como fazer um cinema capaz de instaurar a sua verdade interna, através de uma metodologia provocativa e que liberta o realizador de um compromisso com uma falsa posição de mero observador, seguindo a tradição do filme documental e do filme etnográfico existente.
É uma trajetória no mínimo incomum. O engenheiro que encontra a antropologia e que descobre o cinema como ferramenta etnográfica. Hoje, bastaria dizer que ele era multidisciplinar. Mas ainda é pouco para referir-se a um dos fundadores da Antropologia Visual e do Cinema Verdade. Rouch abriu caminho com um pé no rigor da ciência e outro na liberdade da criação artística. Adorava o Surrealismo e tinha como inspiradores os pais do documentário moderno. Flaherty e Vertov. Embaralhou os dogmas sobre o que pode ser verdadeiro no filme de ficção e o que há de falso no documentário, em nome da isenção do observador. Corajoso aventureiro, derramou solvente nas linhas e cores que demarcavam as fronteiras do cinema fundamentado em ficção e realidade como campos antagônicos.
Em 1958, Rouch fazia com o cinema algo semelhante ao que Miles Davis fazia com o Jazz, ou seja, expandia os limites do meio de expressão rumo ao desconhecido, abdicando das formas assépticas e rígidas que impediam a contaminação com o autêntico do objeto representado. O Cinema Verdade foi o impulsor de uma nova atitude do fazer cinematográfico que explodiu na década de 1960 com os Novos Cinemas, como a Nouvelle Vague na França e o Cinema Novo no Brasil.
Jean-Luc Godard, etnógrafo de formação, é um dos principais seguidores do pensamento de Rouch sobre a verdade essencial do cinema. Sem a obra de Rouch, Godard jamais teria feito uma de suas frases mais emblemáticas: “o cinema é a verdade a 24 quadros por segundo”. Em seu primeiro longa-metragem, ACOSSADO (A Bout de souffle, 1960), Godard rende homenagem a Eu, um negro (Mois, un niger 1958) filme essencial de Rouch. Na Europa que renasce da devastação da Segunda Guerra Mundial e enfrenta as guerras coloniais na África, mais do que procurar a verdade, Rouch trabalha para provocar a verdade em seus filmes e é esse dispositivo ou compromisso que parece conectar a sua obra como antropólogo e engenheiro civil, ao percurso de outros realizadores. A procura da verdade dos personagens e situações em seus filmes é o que organiza e fundamenta um pensamento sobre um cinema absolutamente humano, voltado para a condição do homem e, portanto, complexo, imperfeito e subjetivo, mesmo na sua objetividade.
Sua inspiração no caminho aberto por Robert Flaherty, vem e sobretudo do clássico NANOOK, O ESQUIMÓ (Nanook of the North, 1922), filme sobre o modo de vida e o cotidiano de uma família de esquimós. A esse modo de documentar uma comunidade, a partir de um olhar externo, estrangeiro, analítico, mas que se estabelece na convivência compartilhada e na interação desse convívio, Rouch acrescentou o procedimento de retornar a essa comunidade para mostrar o filme realizado. Mais do que isso, discutir o filme com a comunidade. Permitir que aquelas pessoas pudessem ver como foram representadas pelo outro e verificar até que ponto se reconhecem nesse processo.
Seu método de filmar era baseado na equipe reduzida, equipamento leve (câmeras 16 mm que ele sabia operar), muitas vezes sem a gravação do som direto (o som era feito posteriormente, com a inclusão de comentários). Ao contrário da escola tradicional que impedia a interação do realizador com o objeto filmado, dogma dos documentários e do filem etnográfico vigentes, Rouch filmava a sua conversa com os personagens de seus filmes e não raro deixava-se mostrar na cena. Não como um repórter de televisão ou dos cinejornais, mas como um realizador que não temia expor-se durante a experiência de vivenciar a plenitude do ato de filmar. Muitas vezes, mostrava o impasse ou a dificuldade da filmagem. O silêncio prolongado de uma resposta que não chega. A resposta que devolve uma pergunta ao realizador. A dificuldade de chegar a um determinado local. A aproximação com um determinado grupo para revelar suas vidas, seus rituais, sua cultura.
Sua obra tem cerca de 120 filmes que continuam inspirando cineastas, antropólogos, etnólogos e artistas de diferentes gerações, em qualquer parte do mundo. Hoje, muitos de seus filmes estão disponibilizados na Internet. Rouch não se ocupava apenas com a realização de seus filmes. Dedicou-se durante muitos anos a ensinar seu modo de fazer cinema, criando oficinas que ele ministrou pela África, França e Estados Unidos.
Foi um grande inovador, ao propor o despojamento do trabalho cinematográfico com uma equipe mínima para transformar o ato de filmar o outro com a aproximação necessária para revelar o verdadeiro de cada situação. Soube utilizar o equipamento mais portátil do 16 mm e do som direto como forma de minimizar o impacto sobre o objeto filmado. Ao mesmo tempo, assumiu e revelou que a presença da câmera gera inevitavelmente alterações de comportamento de quem é filmado. A encenação como característica da condição humana diante do ato de filmar. O realizador em sua busca encontra o outro a quem dá a liberdade de sua performance mais autêntica.
A inovação de transformar o uso das ferramentas, no caso o aparato técnico do cinema que consistia nos equipamentos de filmagem e nos processos industriais de finalização e da própria difusão da obra, em busca de um maior controle do realizador sobre o produto final, é uma das contribuições de Jean Rouch. Se o cinema havia nascido como uma arte impura, como afirmara Renoir, a possibilidade de uma outra escritura fílmica proposta por Rouch chega ao Século XXI potencializada pela pela maior portabilidade dos dispositivos de registro de imagens e sons. A ferramenta será o que for feito com ela pelo homem.
Não é difícil imaginar o que estaria Jean Rouch filmando nos dias de hoje. A África e sua degradação humana. A fome, as doenças, as guerras, a fuga de milhões que não são reconhecidos como refugiados. O fechamento das fronteiras entre países. O terrorismo, o genocídio, a escalada de um conflito nuclear. O esgotamento do meio ambiente pela exploração do homem. Mas todas estas imagens estão diariamente disponíveis em todas as telas e são verdadeiras. As narrativas, entretanto, infelizmente, nem sempre são reais. As verdades instauradas diariamente pela via audiovisual, fazem o mundo mais desumano, na direção oposta ao legado de Jean Rouch.
Filme: Os Mestres Loucos - 1955
Fonte: Correio do Povo/CS/João Guilherme Barone Reis e Silva/Cineasta, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS em 23/12/2017