KIAROSTAMI NA MEMÓRIA
MORTO NA SEGUNDA-FEIRA, 4 DE JULHO, ABBAS KIAROSTAMI FOI MAIS DO QUE A GRANDE REFERÊNCIA DO CINEMA IRANIANO: FOI UM DOS MAIORES ARTISTAS DE SEU TEMPO. ZH LEMBRA O MESTRE A PARTIR DE SEUS PRINCIPAIS FILMES, DO DEPOIMENTO DA CRÍTICA QUE SE DEBRUÇOU SOBRE A SUA OBRA E DO TESTEMUNHO DE UMA SESSÃO MARCANTE REALIZADA NA CAPITAL.
Na última segunda-feira, recebi mensagens e falei com algumas pessoas sobre a morte de Abbas Kiarostami. E dois desses contatos havia choro: um curador de uma mostra sobre Kiarostami e um cineasta gaúcho. O fato desses dois homens, que se relacionavam com os filmes do diretor iraniano de forma distinta, chorarem a sua morte exemplifica o poder de seu cinema.
Anos atrás, conheci um jovem documentarista em Teerã. No lançamento do curta Sea egg (sobre esse evento, ligado à situação do cineasta Jafar Panahi, publiquei artigo em ZH em 8 de janeiro de 2010), ele me contava que em momentos de depressão ia até a frente da casa de Kiarostami e ficava sentado na calçada. Simplesmente ficava ali, sabendo que provavelmente o diretor não estaria em casa, talvez nem no país. Mas aquilo aliviava. Se, para cinéfilos e estudiosos da obra de Kiarostami, a tristeza se traduz em choro, imagine-se a dor de uma legião de fãs no Irã a quem ele representava tudo.
Kiarostami conseguiu ser criativo mesmo na difícil situação de trabalhar para o governo, no caso, o regime do xá Reza Pahlevi, nos anos 1960 e 70, através do Instituto Kanun que produzia filmes para crianças e adolescentes; conseguiu driblar a censura quando instalada a República Islâmica em 1979 e, mais do que isso, com seguiu surpreender a cada filme. Há quem possa não se envolver nos enredos minimalistas, nos enigmas narrativos, mas não há como negar sua inventividade. Kiarostami nunca se repetiu, nunca se acomodou em modelos. Não há, entre seus mais de 40 títulos entre curtas e longas, um só filme parecido com outro, mesmo que os temas envolvendo a morte e a natureza sejam recorrentes. Não é à toa que conquistou dezenas de prêmios internacionais e que nomes como Godard, Scorsese e Kurosawa emitiram opiniões retumbantes sobre sua importância.
Em um jantar durante o Farj Film Festival, na capital iraniana, antes ainda de me decidir pelo tema do meu doutorado, que acabou sendo sobre Close-up (doc-fic do cineasta que está entre os 50 melhores filmes de todos os tempos de acordo com a British Film Institute), pude perceber pela primeira vez uma característica fundamental de Kiarostami: o gosto pela observação. Ele era o que menos falava; apenas ouvia. Em outros encontros, em Teerã e na Mostra de São Paulo, era sempre elegantemente monossilábico nas respostas e generoso nas perguntas sobre a tese, sobre o orientador, sobre o Brasil.
Esta pode ser uma chave para compreender o humanismo dos seus filmes. Kiarostami era alguém que ouvia, que se interessava em saber do outro. Fazer um close em um personagem tem esse sentido também.
Outra chave importante é a poesia. No prefácio que escrevi para o seu livro de poemas a ser lançado pela Rocco, AS ROSAS E A LUA, chamo a atenção que é como poeta que Kiarostami faz seus filmes, e como poeta observa o mundo. Esses verbos agora precisam ir para o tempo passado, mas com a certeza de que sua obra permanece.
Por Ivonete Pinto – Professora e crítica de cinema, autora do livro “Descobrindo o Irã” e de tese de doutorado defendida na USP sobre o filme “Close-up”, de Kiarostami, em 8 de julho de 2016.
UMA DESPEDIDA HISTÓRICA EM PORTO ALEGRE
Na capital gaúcha, a despedida de Abbas Kiarostami foi histórica. Entre os dias 14 e 20 do mês passado, três salas do circuito alternativo da cidade receberam a mostra UM FILME, CEM HISTÓRIAS: ABBAS KIAROSTAMI, que permitiu aos cinéfilos gaúchos assistirem a algumas de suas obras-primas no cinema – CLOSE-UP (1990), ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS (1994) e DEZ (2002) entre elas. Mais do que isso, apresentou uma raridade: O RELATÓRIO (1977). Trata-se do filme da transição entre os títulos realistas da época em que trabalhou em um centro para o desenvolvimento intelectual de crianças de Teerã e aqueles que ele realizaria após a Revolução Islâmica de 1979, absolutamente originais em sua complexidade formal – e que o levariam à consagração também fora de seu país de origem.
O RELATÓRIO chegou a ser dado como perdido – até que se encontrasse uma cópia, com legendas em inglês sobrepostas às imagens de cores sóbrias e fotografia naturalista. O filme foi apresentado às 20h de uma sexta-feira fria em uma Sala P.F. Gastal praticamente lotada, seguida de um debate com a presença da crítica Ivonete Pinto. Na conversa, que contou com a intervenção de diversos presentes, manifestou-se a surpresa do público, em primeiro lugar, com as imagens da capital iraniana pré-revolução – “Uma cidade como qualquer outra do Ocidente”, alguém comentou. Segundo: com a força da crítica social que Kiarostami direcionava a algumas instituições, apresentada por meio de um naturalismo cru, ora sutil (os médicos revelando estarem acostumados a atender mulheres vítimas de violência doméstica), ora impactante pela agressividade (o logo plano sequência da briga do casal protagonista é coisa não de um cineasta de carreira incipiente, mas de um mestre da linguagem).
Presente à sessão, o crítico e professor de cinema Fernando Mascarello comparou a abordagem da trama sobre a crise conjugal, entre outros filmes, àqueles que o brasileiro Arnaldo Jabor realizou também entre as décadas de 1970 e 80, sublinhando a universalidade de Kiarostami. Nos anos seguintes, o cineasta iraniano desenvolveria uma carreira brilhante exercitando a metalinguagem e provocando o espectador a refletir sobre os limites entre realidade e ficção de um jeito muito particular. Já no fim da carreira, filmando na Itália (CÓPIA FIEL, de 2010) ou no Japão (UM ALGUÉM APAIXONADO, 2012), sempre com elenco internacional, ele estenderia essa pesquisa estética ao terreno – no seu caso, movediço – entre realidade e simulacro. Mas a verdade é que, metáfora de muitos de seus personagens em deslocamento, seu destino nunca foi certo. Os caminhos percorridos por Abbas Kiarostami eram imprevisíveis. Foi assim até o fim.
O que a inesquecível sessão de O RELATÓRIO permitiu constatar foi aquele que talvez tenha sido o momento da grande virada em sua carreira: de um bom diretor iraniano para um dos mais instigantes autores que o cinema já viu.
Por Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) em 8 de julho de 2016.
ALGUNS FILMES FUNDAMENTAIS
ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? (1987)
Premiado no Festival de Locarno, o filme apresentou Kiarostami e o cinema iraniano para o Ocidente. Com um viés neorrealista e humanista, a história confere um tom de périplo a um episódio corriqueiro: um menino descobre que pegou por engano o caderno de um colega de turma. Desobedecendo a mãe, Ahmad vai ao vilarejo vizinho em busca do amigo, que foi ameaçado de ser expulso da escola caso não levasse o dever de casa feito. O cineasta voltaria ao local e aos personagens em E A VIDA CONTINUA (1992), filme em que um diretor procura reencontrar os garotos após um terremoto que atingiu o norte do Irã em 1990.
CLOSE-UP (1990)
Um dos títulos mais instigantes de Kiarostami, o longa borra os limites entre ficção e documentário, registro e encenação, verdadeiro e falso ao seguir um homem acusado de ter enganado uma família rica de Teerã fazendo-se passar pelo cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf – diretor de filmes como O CICLISTA (1987), GABBEH (1996) e A CAMINHO DE KANDAHAR (2001). Kiarostami filma o julgamento de Houssein Sabzien e reencena toda a história com os personagens reais envolvidos no caso.
ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS (1994)
A consagração internacional do realizador consolidou-se com essa produção, rodada novamente na região devastada pelo sismo de 1990. Outra vez, vida e arte espelham-se e se embaralham: na história, um diretor percebe que o jovem não ator escolhido para viver um dos personagens de seu filme está apaixonado de verdade pela garota que fará o papel de sua esposa. A família de Tahereh é contrária ao relacionamento, mas Houssein acha que o filme pode ajuda-lo a quebrar a desconfiança dos parentes da amada.
GOSTO DE CEREJA (1997)
Kiarostami aproxima-se do cinema existencialista nesse duro e comovente drama que aborda dois temas tabus no Irã: o suicídio e a homossexualidade. Um homem dirige pelas ruas de Teerã à procura de alguém disposto a ajuda-lo em seu último desejo: enterrá-lo em uma cova sob uma cerejeira depois que ele se matar. Repleto de belas imagens poéticas e melancólicas, essa obra-prima ganhou a palma de Ouro no Festival de Cannes.
O VENTO NOS LEVARÁ (1999)
Kiarostami retorna aos amplos espaços abertos e à peculiar topografia acidentada do Irã rudimentar para falar de novo sobre existência e morte em O VENTO NOS LEVARÁ. Vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Veneza, o longa acompanha um jornalista de TV que parte com sua equipe para um vilarejo rural a fim de filmar um rito tradicional: o funeral de uma senhora moribunda. A centenária mulher, porém, demora a morrer – e, durante a longa espera, o estrangeiro torna-se amigo de um garoto que lhe mostra a região e o cotidiano da erma localidade.
CÓPIA FIEL (2010)
Kiarostami ecoa o mestre italiano Roberto Rossellini (1906-1977) e seu clássico VIAGEM À ITÁLIA (1954) em seu primeiro filme rodado fora do Irã, que rendeu à francesa Juliette Binoche o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Um homem e uma mulher encontram-se em um pequeno vilarejo na Toscana italiana: ele é um escritor britânico (interpretado pelo barítono inglês William Shimell) que acabou de dar uma palestra sobre seu novo livro; ela é uma francesa dona de uma galeria de arte. O que à primeira vista parece ser um flerte entre dois desconhecidos, no entanto, pode ser na verdade uma tentativa de recuperar um casamento desgastado.
Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Roger Lerina (roger.lerina@zerohora.com.br) em 8 de julho de 2016.