O FILME DAS MULHERES NEONAZISTAS
Anote este nome: Beth de Araújo. A julgar pelo que mostrou em seu longa-metragem de estreia – SOFT et QUIET (2022) –, o futuro é promissor para a diretora e roteirista nascida em São Francisco, nos Estados Unidos. Este é um dos filmes mais impactantes do 19º Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que realizou uma lotadíssima sessão comentada na noite de quinta e que vai exibir o título pela última vez neste sábado, às 13h, na Cinemateca Capitólio (aconteceu em final de abril) (como tem produção da Blumhouse, uma das mais renomadas no gênero do terror, é possível que em breve ganhe uma data de estreia no Brasil, seja nos cinemas ou no streaming – pelo menos nos EUA, chega à Netflix em maio).
Como o nome deixa intuir, a californiana tem raízes brasileiras – por parte do pai; a mãe é uma chinesa-estadunidense. Araújo é formada em Sociologia pela Universidade de Berkeley e, antes de SOFT et QUIET, assinou quatro curtas — entre eles, CHEVY CHASE, drama sobre uma dependente de Oxycontin, e a comédia agridoce I WANT TO MARRY A CREATIVE JEWISH GIRL, entre 2014 e 2019 –, e dois episódios da série MY CRAZY SEX, em 2017.
Por SOFT et QUIET ela concorreu na categoria de diretores estreantes no Gotham Awards, troféu dedicado a produções de baixo orçamento (o teto é US$ 35 milhões) que abre a temporada de premiações nos EUA. O filme também recebeu muitas críticas positivas. Na revista Rolling Stone, por exemplo, foi listado como o sexto melhor terror de 2022 pelo crítico David Fear (aliás, sobrenome apropriado para a tarefa: em inglês, significa medo): "O que é mais assustador do que Freddy Krueger, Jason Chucky e Michael Myers juntos? Que tal uma cabala de Karens neonazistas? (Karen é uma gíria pejorativa estadunidense para designar mulheres brancas autoritárias, agressivas – daquelas que gostam de se queixar com o gerente por tudo e qualquer coisa – e muitas vezes racistas e negacionaistas.) Os últimos 30 minutos são tão tensos que é quase impossível assistir. Tome isso como um elogio e um alerta".
Fear também chamou atenção para um dos trunfos – e um dos truques – de SOFT et QUIET: a narrativa em tempo real. Em entrevista ao site IndieWire, Beth de Araújo disse que a intenção foi fazer o filme "parecer tão intenso e sufocante quanto um crime de ódio real e verdadeiro". É como se tudo o que acontece ao longo de 90 minutos tivesse sido filmado em um único e longo plano-sequência, mas na verdade a diretora, sua equipe técnica e seu elenco trabalharam durante quatro dias, sempre começando às 18h34min, e há mínimos e quase imperceptíveis cortes.
TORTA
Quando a história começa, conhecemos sua protagonista, a professora de educação infantil Emily (Stefanie Estes, vista nos seriados do Amazon TALES FROM THE LOOP e O CONSULTOR). Ao perceber que uma mãe se atrasou, ela resolve fazer companhia a um menino. Fala de um livro para crianças que escreveu e mostra – só para os olhos dele, não para o espectador – a torta que está levando para um encontro com amigas.
A travessa com essa torta estará no centro da imagem enquanto a câmera acompanha o deslocamento de Emily até o chalé localizado em uma área verde que será palco da reunião e onde já estão Kim (Dana Millican), Marjorie (Eleanore Pienta), Alice (Rebekah Wiggins) e Jessica (Shannon Mahoney). No caminho, a professora conhecerá outra participante, Leslie (Olivia Luccardi), que traz nas costas da sua jaqueta jeans uma frase em alemão: Liebe zu hassen.
Se você sabe alemão, talvez se surpreenda menos quando, em meio a conversas amenas e risadas, Emily enfim desembalar a torta, revelando a existência de uma suástica em sua decoração.
Aquela é a primeira reunião das Daughters for Aryan Unity (Filhas pela Unidade Ariana). Leslie, como diz a estampa de sua jaqueta, ama odiar. Marjorie se queixa por ter sido preterida por uma imigrante colombiana em uma promoção no trabalho. Kim, que administra com o marido uma loja de bebidas, lamenta que "o país esteja sendo tomado debaixo do nariz" e tem sempre um termo pejorativo para colar em judeus, negros e asiáticos. A solitária Alice, mesmo ciente dos privilégios de ser branca, sente-se ainda mais "excluída" por causa de movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Mãe de quatro filhos e grávida do quinto, Jessica conta que seu pai foi presidente interino da Ku Klux Klan e que ela atua bastante no Stormfront, site que propaga a supremacia branca, o nazismo, a negação do Holocausto, teorias conspiratórias antissemitas, islamofobia, antifeminismo, homofobia, transfobia... O pacote completo.
Para Emily, a população branca dos EUA vem sofrendo um processo de "lavagem cerebral" para que se sinta "vergonha da herança e culpa pela prosperidade". É ela quem explica o soft (suave) e quiet (silencioso) do título do filme:
— Nós temos que ser suaves por fora para que as ideias vigorosas sejam mais bem aceitas. Somos a melhor arma secreta com a qual ninguém toma cuidado porque nos movemos em silêncio.
É de se imaginar a história de terror contada no seu livro infantil e as aulas a serem dadas na escola do ódio que Emily pretende abrir. SOFT et QUIET ilustra como, também debaixo do nosso nariz, na casa do vizinho ou na porta ao lado, ideais neonazistas germinam e se alastram, tendo entre os fertilizantes o ressentimento e a ignorância.
SOFT et QUIET também mostra como a teoria vira prática, como uma "brincadeira" (a exemplo de quando às escondidas, com um sorriso meio constrangido, meio petulante, Emily ergue o braço para fazer a saudação a Hitler) pode descambar para algo muito sério. Basta uma fagulha para provocar um incêndio – e aí a masculinidade tóxica surge como outro combustível: é por meio dela que Emily induz o marido a participar de uma ação que vai de mal a pior, tornando-se cada vez mais aflitiva e asfixiante, a ponto de só conseguirmos respirar no último instante do filme.
Fonte: Zero Hora/Ticiano Osório [ticiano.osorio@zerohora.com.br] em 23/04/2023