EM NOVO FILME, GODARD REFLETE SOBRE O DISCURSO NA ERA DA PÓS-IMAGEM
Filme: IMAGEM E PALAVRA – De Jean-Luc Gogard – Ensaio, França/Suíça, 2018, 84 minutos, 16 anos.
A primeira impressão sobre IMAGEM E PALAVRA, de Jean-Luc Godard, estreia desta semana nos cinemas, pode ser a de mais do mesmo. E é. Desde o monumental HISTÓRIA(S) DO CINEMA (1999), o cineasta recicla ideias (a colagem de registros antigos, um ensaísmo radical e antidramático) em filmes que reafirmam o propósito de sua obra-prima de 20 anos atrás: a despeito da possibilidade infinita de criar narrativas a partir da fragmentação e da sobreposição de imagens, uma característica da contemporaneidade, há uma crise advinda justamente do excesso – como se tudo já tivesse sido organizado e reorganizado, esgotando as possibilidades de discurso.
É aí que entra a pertinência do nov longa, o primeiro do realizador após o apocalíptico ADEUS À LINGUAGEM (2014).
IMAGEM E PALAVRA é dividido em capítulos de cerca de 10 a 15 minutos cada, todos contendo colagens co clássicos (d’Os Nigelbundos de Fritz Lang e Freaks de Tod Browning a Paisá de Rossellini e Johnny Guitar de Nicholas Ray, entre dezenas de outros), cenas amplamente conhecidas (a bomba atômica, a matança da II Guerra Mundial) e outras banais (animações, fotografias e vídeos caseiros). Talvez não haja, em toda a sua filmografia, um retrato tão gráfico do terror como na primeira parte da trama. Contudo, o mestre das descontinuidades temporais (elas foram a base de ACOSSADO, o mais moderno dos filmes da alvorada da modernidade do cinema) se faz ver nos cortes que quebram o tempo da narrativa justamente nos momentos em que o choque está prestes a ocorrer. Mais do que isso, a própria associação entre as imagens impõe uma sensação do interdito: o bico dos aviões a carregar bombas é sobreposto ao TUBARÃO de Spielberg, como se o registro fosse nada além dele próprio, à semelhança de tantos outros registros, disponível para qualquer discurso, independentemente do que já significou em outros momentos.
É uma reflexão sobre a imagem como representação – capaz de, sendo reciclada, recriar a própria História.
A “palavra” do título, portanto, nada mais é do que essa capacidade de escritura que é própria de cada uma das imagens – clássicas ou banais. É por isso que Godard trabalha suas texturas, ora estourando cores, ora desidratando-as. Até depois do horror absoluto pode haver redenção, ele indica, conforme os capítulos vão se sucedendo e o tom passa a ser (um pouco) menos desesperançoso. Uma imagem que antes era associada ao fim pode muito bem ser ressignificada como outra coisa, quem sabe até o início de algo. É uma era da pós-imagem, na qual tudo, no fim das contas, é montagem.
Um aspecto importante é o fato de que os trechos finais de IMAGEM E PALAVRA se concentram em representações do chamado mundo árabe. “No Oriente, todos são filósofos. Porque têm mais tempo para refletir”, diz o cineasta, em off, já na última parte da narrativa. Nesse ponto, as imagens contêm ainda mais intervenções – há algumas tão coloridas que parecem borrões e outras com movimentos manipulados, incluindo pulos, como se houvesse cortes dentro de um mesmo plano (descontinuidade na continuidade). O discurso, antes esgotado, destruído (o horror!), ressurge de modo onírico, em uma reinvenção do próprio tempo. Prossegue o diretor-narrador: “Como treinávamos nossos pensamentos antes? Partíamos do sonho”. Há alguma aleatoriedade na sucessão de imagem do sonho, e é em busca dela que o cineasta está. Vai encontrá-la no Oriente, onde “não há a recusa de se autoconhecer” e, portanto, não há “a morte da linguagem”.
Faz todo o sentido que IMAGEM E PALAVRA venha na sequência de ADEUS À LINGUAGEM: para Godard, depois da morte, vem o ressurgimento – graças à força persistente das imagens.
Fonte: Zero Hora/Daniel Feix (daniel.feix@zerohora.com.br) em 17/03/2019.