NOVA VELHA OBSESSÃO DE KUBRICK
Roteiro inédito que teria sido escrito pelo cultuado cineasta Stanley Kubrick em uma fase fundamental de sua carreira é descoberto, dias antes do aniversário de 90 anos de seu nascimento.
Há artistas cuja obra permanece viva mesmo após a sua morte. Há, mais do que isso, artistas que seguem instigando o público ainda que seu tempo tenha ficado no passado. E há Stanley Kubrick (1928-1999), cujo nascimento completa 90 anos na próxima quinta-feira (26/07).
O cineasta, um dos mais celebrados do século 20, assinou apenas 13 longas-metragens em vida, 10 deles entre as décadas de 1950 e 1970. Tido como perfeccionista, renegou o primeiro a ponto de dar sumiço em suas cópias – MEDO E DELÍRIO (1953) só ressurgiu graças à obsessão dos fãs, anos depois. Desenvolveu técnicas para atender a projetos específicos, incluindo lentes ultrassensíveis (para BARRY LINDON, de 1975) e um tipo de steadycam, ou sistema de estabilização de câmera, para os célebres planos nos corredores do hotel de O ILUMINADO (1980). Depois de títulos como DR. FANTÁSTICO (1964), 2001, UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (1968) e LARANJA MECÂNICA (1971), criou-se tamanha expectativa em toro de seus projetos seguintes que nem o próprio Kubrick, meticuloso ao extremo, sentiu-se confortável para realizá-los. Em alguns casos, claro.
O mais célebre desses casos é NAPOLEÃO, épico monumental tido como seu filme mais ambicioso que rendeu dois anos de trabalho – documentados no livro-álbum de nome sugestivo lançado pela Taschen: STANLEY KUBRICK’S NAPOLEON: THE GREATEST MOVIE NEVER MADE (“O MAIOR FILME NUNCA FEITO”, em tradução literal). Outro caso bastante conhecido é o de A.I.: INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, projeto interrompido em fase embrionária que Steven Spielberg resolveu assumir logo após a morte de Kubrick, em homenagem ao amigo e ídolo – o longa acabou lançado em 2001, dois anos após a sua morte.
Mas há – cada vez – mais. Nos últimos dias, o jornal britânico The Guardian noticiou que o professor universitário Nathan Abrams encontrara o que seria um roteiro inédito escrito pelo cineasta em 1956. O texto apareceu em meio a uma pesquisa que Abrams realizava para um livro sobre Kubrick. Estava na casa do filho de um de seus colaboradores (que preferiu não revelar sua identidade), junto a outros objetos deixados pelo diretor.
O roteiro, “praticamente finalizado”, segundo o pesquisador, leva o título de BURNING SECRET. Trata-se, contou Abrams, de uma adaptação da novela homônima de Stefan Zweig (1881-1942), sobre um homem que manipula um garoto de 10 anos para conseguir seduzir a mãe dele. Teria sido escrita em conjunto com o romancista Calder Willingham (1922-1995), que dividiu com Kubrick o crédito do roteiro de GLÓRIA FEITA DE SANGUE, filme de 1957.
- Já se sabia que ele tinha a intenção de filmar essa novela, mas ninguém achava que o roteiro estivesse tão desenvolvido. Agora temos uma cópia que prova que, sim, estava – disse Abrams.
A cópia é datada de outubro de 1956 e contém um selo dos estúdios MGM. Por que não foi levada adiante? Pode-se conjecturar a respeito. A MGM, que também desistiria de realizar NAPOLEÃO, pode ter desencorajado o diretor. Ou o próprio Kubrick pode tê-lo substituído por outro filme. Essa última hipótese faz sentido: logo após GLÓRIA FEIA DE SANGUE, ele assumiria a direção do épico SPARTACUS (que já estava em desenvolvimento e foi lançado em 1960) e, em seguida, dedicaria-se a LOLITA (1962), adaptação da obra de Vladimir Nabokov (1899-1977) cuja temática contém alguma semelhança com BURNING SECRET – ambas as histórias envolvem uma criança e uma trama romântica a chocar a moral vigente nos grandes estúdios de Hollywood.
Segundo Abrams, o roteiro tem cem páginas. O texto descreve o personagem principal como “um predador sexual na casa dos 30 anos”, “muito bonito e masculino”. A força da figura masculina chama atenção em SPARTACUS, também aproximando o filme não rodado com as realizações do cineasta à época.
É certo que as experiências com SPARTACUS e LOLITA foram determinantes para Kubrick: no primeiro, ele não teve controle total sobre a produção, comandada pelos executivos da MGM; no segundo, enfrentou o moralismo do mainstream cinematográfico a podá-lo na chocante história nabokoviana do professor que se apaixona por uma adolescente. O Kubrick que decidiu nunca filmar BURNING SECRET é o mesmo que, a partir daquele final dos anos 1950, início dos 1960, decidiu assumir o controle absoluto de seus projetos, deixando de lado algumas possíveis rusgas com produtores e, assim, tornando-se o cineasta obcecado que tantos fãs fascina até hoje, quase duas décadas depois de sua morte.
Fonte: Zero Hora/Caderno Doc em 22/07/2018